30 de setembro de 2012

O pensamento de Lenin (ensaio)

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Por Luciano Gruppi

"A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo."
Lênin

Do estudo do pensamento de Lênin, fica-nos a persuasão de que a característica mais profunda de seu método, de sua mentalidade, é o sentido da concreticidade histórica, a consciência da historicidade. “A análise concreta da situação concreta é a alma viva, a essência do marxismo” (v. 31, p. 135).  Essa advertência, que reaparece mais de uma vez, parece-nos caracterizar o modo pelo qual ele se situa diante do marxismo.

Assim, ele parte — com um emprego do marxismo que já é incrivelmente maduro — da investigação da específica situação histórica russa, do modo peculiar pelo qual o capitalismo se desenvolve nesse país. A investigação da especificidade russa serve-lhe para fundar a posição do proletariado diante da democracia burguesa, assim como a necessidade da sua hegemonia. Em 1917, ele vê a articulação singular, original, que se verifica na Rússia entre o poder da grande burguesia e a ditadura democrática dos operários e dos camponeses; vê o modo pelo qual o alinhamento das forças políticas cria as condições e põe a necessidade de que as tarefas da revolução democrática sejam assumidas pela ditadura do proletariado e resolvidas numa conexão historicamente nova, original, entre a revolução democrática e a revolução socialista.

A convicção de Marx e Engels de que o marxismo não é um dogma, mas um método para a ação, é assim em Lênin algo muito forte; trata-se de uma ideia frequentemente repetida, sobretudo nos momentos de virada histórica e quando surgem novas situações políticas. É o caso em 1907, quando — após a derrota da primeira revolução — coloca-se a questão da atitude da classe operária em face da Duma reacionária; é o caso depois da Revolução de Fevereiro, quando se trata de passar para a nova etapa da revolução proletária. A teoria revolucionária não é dada para sempre; ela generaliza, elevando ao nível da consciência, a experiência histórica.  Todas as vezes que — a história, como Lênin observa, “jamais se repete” — todas as vezes que se põem à praxis tarefas novas, as conquistas teóricas alcançadas até aquele momento não bastam mais e colocam-se novas tarefas de investigação e de elaboração.

O marxismo, portanto, não é uma teoria universal que contenha em si todas as respostas; não é uma “filosofia da história” da qual possam ser deduzidas todos os momentos históricos. É o método que permite compreender o processo histórico em sua determinação concreta. Não é possível nenhuma separação entre método e teoria.

O método só é tal enquanto se vale de categorias científicas, resultantes da tomada de consciência dos elementos que constituem o processo da história. Mas a história não é um fluir indistinto de fatos que devam ser apenas constatados e aos quais se deva apenas aderir; movida pelo desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção, pelos alinhamentos de classe correspondentes, a história se divide em formações econômico-sociais diversas. Essa categoria de formação econômico-social, definida pelas leis que a governam, permite compreender a direção de um desenvolvimento histórico, antes mesmo que suas linhas tenham emergido com plena clareza; mas não esgota a necessidade de descobrir o modo específico pelo qual uma formação econômico-social se realiza nas diferentes situações. Na noção de formação econômico-social, na consciência da historicidade das leis econômicas, do caráter dinâmico dos sistemas econômicos, na conexão que estabelece entre análise econômica e análise sociológica e política, consistem a cientificidade do marxismo.

Nisso reside sua capacidade de descobrir as características concretas do processo histórico.

No interior de uma formação econômico-social geral (por exemplo: a capitalista), especificam-se os diversos processos de desenvolvimento dessa formação: a especificidade nacional, a especificidade dos alinhamentos de classe, a singularidade das situações e dos eventos políticos. Só se faz política, praxis transformadora, quando há utilização das categorias constitutivas da formação econômico-social com o objetivo de descobrir as formas concretas através das quais ela se desenvolve.

Reside também aqui o fundamento científico da política proletária, que se faz guiar por categorias científicas e que as verifica na praxis.
Mas, precisamente porque a formação econômico-social representa o modo pelo qual se demarca o desenvolvimento histórico, ela deve ser captada em seu desenvolvimento, em suas transformações. É assim que Lênin — que compreendeu a concreticidade de uma situação histórica determinada (russa) graças à aplicação das categorias científicas do marxismo — se eleva à compreensão da nova fase do desenvolvimento da formação econômico-social capitalista: o imperialismo.

O processo histórico é concebido em sua totalidade, na relação de estrutura e superestrutura, na conexão entre economia e política. Se Marx nos dá a estrutura do capitalismo — observa Lênin — emprega ao mesmo tempo as categorias constitutivas dessa estrutura para a compreensão dos desenvolvimentos reais, da atitude das forças políticas, da função das personalidades individuais.

Para Lênin, o momento decisivo é o da política.  É o caso quando, diante da Revolução de 1905, critica os neo-iskristas por não compreenderem a função dos partidos, que intervêm ativamente no desenvolvimento histórico, por não terem entendido as teses de Marx sobre Feuerbach, por terem rebaixado o materialismo histórico a um materialismo pré-marxista, metafísico. É o caso depois da Revolução de Fevereiro, quando a atitude a assumir é sugerida antes de mais nada pelo juízo sobre o alinhamento político. É sempre o caso. Mas a política só decide na medida em que implica a compreensão da situação objetiva, empregando categorias científicas, reportando-se à estrutura que governa o processo histórico.

Há uma conexão dialética entre economia e política, estrutura e superestrutura, situação objetiva e iniciativa revolucionária, objeto e sujeito. Se considerarmos o conjunto do pensamento de Lênin, veremos que a atenção se volta sempre para a dialética: dialética dos processos reais, modo pelo qual se manifesta neles a contradição, relação entre todos os elementos que a constitutem, conexão entre situação objetiva e iniciativa política. A política só é plenamente tal, só atinge uma fundamentação científica própria, se for guiada pela teoria, pelo conhecimento das leis que governam o desenvolvimento histórico e das categorias que devem ser aplicadas à análise das situações concretas. Mas, precisamente por isso, a política — fundada pela teoria — por sua vez funda essa teoria, a verifica, exige seu desenvolvimento, num constante reexame crítico. A política representa a unidade entre a teoria e a ação, a mediação entre elas.

A estreita relação entre a teoria e a ação, a permanente preocupação política, prática, que guia todos os momentos do pensamento de Lênin, a estreita adesão à concreticidade da história, torna esse pensamento — como esperamos ter conseguido demonstrar — extremamente rico e articulado.

Disso resulta a impossibilidade de reduzir sua concepção (ou, mais exatamente, o desenvolvimento de sua concepção) a algumas obras, por mais importantes que sejam. Assim, para darmos um exemplo, não entenderemos sua concepção do imperialismo, em toda sua riqueza, se nos limitarmos ao famoso ensaio, embora seja o escrito mais importante sobre o assunto, e se não considerarmos as análises desenvolvidas em outros textos sobre o capitalismo monopolista de Estado. Do mesmo modo, não entenderemos sua concepção do Estado se nos limitarmos a O Estado e a Revolução. Se nos referirmos só a algumas obras, correremos o risco de incidir em graves equívocos, em perigosas simplificações do seu pensamento.

Mas, sobretudo, nada — ou quase nada — compreenderemos da sua ação e dos seus escritos se não os situarmos no momento histórico e político a que eles se referem, se não esclarecermos qual era o fim político, prático, ao qual sempre tendiam de modo consciente. Ele mesmo o diz, num prefácio a seus escritos, datado de 1907: “O erro fundamental em que incorrem hoje os que polemizam com o Que Fazer? está no fato de que esse escrito é inteiramente separado de sua conexão com uma situação histórica determinada, com um período determinado” (v. 13, p. 89).

Uma daquelas ironias da história, às quais Lênin gosta de se referir, terminou por fazer com que precisamente seu pensamento — e, mais ainda, momentos de seu pensamento — fossem absolutizados, prescindindo-se do seu condicionamento histórico-político, tomando-se esse pensamento ou esses momentos isolados dos desenvolvimentos que as concepções leninianas conhecem em outros momentos e escritos.

O fato é que, quando de sua morte, a áspera luta política (e consequentemente teórica) que se travou no Partido Comunista Russo (bolchevique), envolvendo alguns temas decisivos para a vida do regime soviético, teve de tomar como referência — o que era não só inevitável, mas também justo — os ensinamentos de Lênin. Condição para que uma tese se afirmasse sobre outra foi a de que aparecesse como a interpretação mais fiel e consequente do pensamento de Lênin: e aqui se foi além do que era justo. A luta política, assim, transformou-se também em luta por uma determinada interpretação de Lênin. Formulações que eram desenvolvimentos da teoria revolucionária em comparação com o pensamente do Lênin, desenvolvimentos exigidos por situações novas, eram ao contrário apresentadas pura e simplesmente como teses do próprio Lênin. Foi o caso, por exemplo, da teoria do socialismo num só país, cuja possibilidade está contida nos últimos escritos — em particular em Melhor pouco mas bom —, mas apenas a possibilidade e não a afirmação explícita. A afirmação de que o socialismo pode vencer “primeiro” em alguns ou mesmo em um só país — contida em Os Estados Unidos da Europa — é invocada como a prova de que a teoria do socialismo num só país já estava presente em Lênin. E deixou-se de lado o “primeiro”, assim como o fato de que ele não especificou de que países se pudesse tratar.

Em suma, toda uma série de momentos do pensamento de Lênin foram absolutizados, destacados da situação concreta de onde surgiram e para a qual se dirigiam.  Enquanto isso, outros momentos foram deixados na sombra ou esquecidos.

Mestre desse modo de “utilizar” Lênin foi indubitavelmente Stalin. Não se pode negar, ao seu modo de interpretar o pensamento de Lênin, força teórica e extrema lucidez, notabilíssima capacidade de síntese. É preciso reconhecer que “acertar contas” com Lênin, confrontar-se na base de uma interpretação do seu pensamento, assim como “sintetizá-lo”, era naquele momento uma necessidade. É isso tanto para a luta política que então se travava, quanto em função da necessidade de formar teoricamente uma grande massa de quadros e de militantes, não só soviéticos, mas de outros países, provenientes dos mais variados ambientes políticos e culturais e geralmente pouco aparelhados culturalmente. Assim, interpretação para os fins da luta política e difusão e divulgação se articulavam como dois momentos igualmente necessários. Mas, desse modo, perdia-se grande parte da rica articulação do pensamento e da ação de Lênin. Sua concepção é simplificada, empobrecida, em grande parte deformada.

Tomemos, como o exemplo mais rico de consequências e mais significativo, a “síntese” da concepção de Lênin contida nas lições de Stalin sobre os Princípios do Leninismo. Trata-se, em seu gênero, de uma obra prima de síntese teórica, de precisão e de clareza. Não se poderia explicar de outro modo sua enorme influência. Mas quanto se perde da “polpa” nessa tentativa de reduzir a concepção leniniana à sua estrutura essencial? E quantas deformações são assim introduzidas na concepção de Lênin?

Vejamos alguns exemplos. “Lênin chamava o imperialismo de ‘capitalismo moribundo’” (As questões do leninismo, Edições em Línguas Estrangeiras, Moscou, 1946, p. 11). As contradições do imperialismo “transformaram o ‘florescente’ capitalismo de outrora em capitalismo moribundo” (Ibdem, p. 12).  Ora, como vimos, a concepção de Lênin sobre o imperialismo é bem mais rica e dialética. Decerto, o imperialismo é a fase de putrefação do capitalismo; mas é também a fase de seu máximo desenvolvimento, a fase na qual têm lugar também grandes possibilidades de desenvolvimento tecnológico e produtivo. Precisamente por isso, porque o imperialismo é o momento do máximo desenvolvimento do capitalismo, ele é também o momento de sua crise e de sua putrefação. É perdida assim toda uma dimensão do pensamento de Lênin. Toda a compreensão da complexidade e contraditoriedade de um desenvolvimento econômico-social é simplificada. E pode-se bem compreender as consequências disso para um estudo objetivo do capitalismo nessa fase, o empobrecimento que resulta para a luta política e para o desenvolvimento da teoria.

E mais: destaca-se apenas um momento da ditadura do proletariado, o momento da violência exercida sem nenhuma limitação legal. Trata-se, sem dúvida, de um elemento essencial da teoria de Lênin. Mas, como vimos, não é o único. A noção de ditadura do proletariado conheceu em Lênin, à medida que ele insistia cada vez mais no momento da direção, uma articulação bem mais complexa. Deve-se notar que, enquanto Lênin insistia cada vez mais sobre a ditadura do proletariado como capacidade de direção, de educação, de persuasão, à medida mesmo que se iam colocando as tarefas construtivas do poder, Stalin — numa fase posterior, quando as tarefas do poder soviético tinham se tornado cada vez mais positivas — insiste, ao contrário, na violência, no momento que Lênin pusera em evidência sobretudo no período mais áspero da guerra civil, negligenciando os demais aspectos. As razões e as consequências políticas desse modo de interpretar a teoria leniniana da ditadura são de fácil compreensão.

É assim deixada na sombra a insistência com a qual Lênin afirma que, com a ditadura do proletariado, o Estado começa imediatamente a se extinguir. O fato de que logo após a tomada do poder e na época de Stalin, numa situação de isolamento do Estado soviético e não de rápida extensão da revolução, a questão não pudesse mais ser colocada desse modo é algo evidente. Mas aqui não nos encontramos diante de um confronto teórico, avaliado em relação à diversidade de situações, mas simplesmente diante do cancelamento da questão. E isso não deixa de ter profundas consequências, já que — quando as condições históricas não permitem (como não permitiam) uma rápida extinção do Estado — perde-se uma das características essenciais do regime socialista, isto é, a gradual identificação do poder estatal com o autogoverno da sociedade; é assim uma das razões fundamentais da sua democraticidade que se perde. Com isso, recusa-se ver como a construção do socialismo em um só pais, ainda que obrigatória, alterou algo essencial na concepção que Lênin (reportando-se a Marx e Engels) tinha da “primeira fase do comunismo”. O fato é que a maneira pela qual Lênin é agora tratado torna impossível uma real confrontação teórica. Os textos de Lênin são cada vez mais assumidos como o critério da verdade. O critério da verdade transfere-se da praxis para os “clássicos” do marxismo. Na realidade, o critério da verdade é estabelecido segundo o modo pelo qual Stalin interpreta Lênin; e cada vez mais se transferirá, de modo imediato, para as afirmações de Stalin.

Para Lênin, o partido é sem dúvida o momento mais alto da consciência de classe em comparação com as outras organizações da classe operária. Em Stalin, essa concepção se converte numa rígida hierarquização das relações e num substancial empobrecimento da articulação das diversas organizações do poder proletário. “O partido — diz Stalin — [...] é a única organização capaz de centralizar a luta do proletariado e, portanto, de transformar as organizações proletárias apartidárias [...] em órgãos auxiliares e em correias de transmissão que ligam o partido à classe” (Ibdem, p. 84). Ora, o conceito de “correia de transmissão” está certamente presente em Lênin, em referência ao sindicato; mas é também verdade que é empregado, entre outras coisas, para recusar a proposta de sua estatização, para defender a função que lhe é própria. Lênin não fala de organizações “auxiliares” do partido; ao contrário, vê o poder soviético apoiar-se num conjunto de organizações sobre as quais o partido exerce a função dirigente.

Mais tarde, na concepção da unidade do partido, será introduzido o conceito de monolítico, inteiramente ausente em Lênin, o qual — se havia insistido sobre a necessária compacticidade do partido — concebera-a sempre como o resultado de uma confrontação dialética.

Um outro exemplo nos é dado pelo modo de situar historicamente Lênin.  “Entre Marx e Engels, por um lado, e Lênin, por outro, estende-se todo o período do domínio do oportunismo da II Internacional” (Ibdem, p. 16). O juízo de Lênin sobre a II Internacional, como vimos, era bem mais rico. Ele indica, em toda uma fase histórica da II Internacional, uma função positiva, de desenvolvimento do movimento em partidos nacionais, de difusão do marxismo, e até mesmo de sua defesa frente aos ataques “revisionistas” de Bernstein. Ao mesmo tempo, vê como as razões do oportunismo foram se acumulando gradualmente, até determinarem a capitulação de 1914.

Não se pode dizer que a análise histórica de Lênin esgote inteiramente a questão, que a categoria de “aristocracia operária” explique tudo o que pretende explicar. Pode-se observar que ele não viu como a “renegação” do marxismo por Kaustsky tivesse suas raízes no modo pelo qual este interpretara o marxismo já nos anos anteriores; mas é certo que, em Stalin, encontramo-nos diante da extrema esquematização de uma avaliação histórica e da profunda modificação do juízo que Lênin formulara sobre a questão.

Disso resulta o que nos parece ser uma falsificação pura e simples da inserção de Lênin na história do movimento operário. Trata-se da conhecida carta de Stalin à revista Proletarskaia Revoliutsia, de 1931, onde ele afirma: “Todo bolchevique sabe [...] que já muito antes da guerra, mais ou menos por volta de 1903-1904, quando se formou na Rússia o grupo dos bolcheviques e pela primeira vez se ouviu falar dos esquerdistas na social-democracia alemã, Lênin seguia uma linha orientada para o rompimento, para a cisão com os oportunistas, tanto entre nós, no Partido Operário Social-democrata da Rússia, quanto na II Internacional, particularmente na social democracia alemã” (Ibidem, p. 384).

Ora, é fato incontestável que a constituição da fração bolchevique no POSDR determinou divergências com a II Internacional, a respeito da posição que essa deveria ter assumido diante dos contrastes no interior da social democracia russa. E é também certo que a II Internacional e o próprio Kautsky tinham maiores simpatias pelos mencheviques do que pelos bolcheviques, e que a razão disso se encontra numa concepção de partido diversa da que Lênin propugnava. Mas não há um só documento, um só escrito ou discurso de Lênin onde se revele uma intenção de rompimento. Ao contrário, a orientação de Lênin se volta no sentido de superar as incompreensões da II Internacional para com os bolcheviques, de conquistar para eles a plena cidadania naquela organização, acompanhando esse esforço com a luta contra o oportunismo. Pode-se dizer que o Lênin de Que Fazer?, e, mesmo antes, o dos primeiros escritos econômicos, já fosse um marxista bem diverso do de Kautsky; mas deve-se também acrescentar que, no próprio Lênin, não havia uma plena consciência dessa diferença, tanto assim que ele continuou a se referir a Kautsky como à maior autoridade em marxismo; e deve-se ainda recordar, sobretudo, que mesmo depois, quando a ruptura já ocorrera e a crítica não poderia ter sido atenuada por motivações políticas, ele continuou a falar com admiração de textos de Kautsky anteriores a 1914 e a referir-se, sem reservas, a um período no qual este “ainda era marxista”.

Também no que se refere à social democracia russa, não se deve esquecer o esforço de Lênin — embora com sucesso pouco consistente — no sentido de reconstituir a unidade das duas correntes, por ocasião do IV Congresso do POSDR.

Depois da morte de Lênin, formou-se toda uma tendência a cancelar da história do movimento operário a II Internacional em seu conjunto, como se se tratasse de um obscuro parênteses. Ignora-se assim que se Lênin, desde os primeiros anos, reportou-se diretamente a Marx e aplicou com originalidade o seu método e a sua teoria, sem deixar-se aprisionar pela mediação de Kautsky, ele aceitou porém uma certa mediação desse teórico do marxismo. Assim como também aceitou a de Plekhânov para a luta contra os populistas, embora a tenha travado logo em seguida de modo original. Aceitou a mediação de Kautsky, tanto no que se refere à questão agrária quanto à teoria do partido; nesse último caso, recolheu de Kautsky a tese decisiva segundo a qual a teoria revolucionária vem “de fora” do movimento operário. A influência filosófica de Plekhânov continuou a atuar, mesmo depois do rompimento, pelo  menos até Materialismo e Empirocriticismo.

Essa eliminação de qualquer mediação da II Internacional na relação de Lênin com Marx e Engels foi o momento necessário de uma importante operação ideológica: a construção da noção de “marxismo-leninismo”. Com essa fórmula, pretende-se precisamente afirmar a rigorosa continuidade da concepção e da ação de Lênin com relação a Marx; e, ao mesmo tempo, pretendeu-se dizer que Lênin imprimiu um vigoroso e consequente desenvovlimento ao marxismo, tal como a nova fase imperialista do capitalismo tornara necessário. Há nisso tudo uma profunda verdade, tanto na afirmação de uma rigorosa relação de continuidade entre Lênin e Marx, quanto na acentuação do valor essencial do desenvolvimento que ele emprestou ao marxismo. Mas há também uma simplificação inaceitável.  Precisamente a negação da existência de uma mediação histórica entre Marx e Lênin, que na verdade existiu; e a recusa de analisar o que essa mediação significou. A consequência foi que depois, com a noção de “marxismo-leninismo”, terminou-se por apresentar a teoria revolucionária do movimento comunista como um todo compacto, em si acabado, capaz de responder a todos os problemas. Perdeu-se de vista a extraordinária riqueza do pensamento de Marx, Engels e Lênin, as diversidades que existem entre momentos diversos do pensamento deles e de cada um deles em particular, assim como o que distingue a personalidade desses revolucionários. Perdeu-se o sentido da historicidade do marxismo e a consciência de que era necessário aplicar o método marxista ao estudo da história do próprio marxismo.

Essa fórmula tornou-se possível por causa de uma certa interpretação de Lênin que transformava seu pensamento num sentido doutrinário, que o simplificava e empobrecia. Só se pode falar de “marxismo-leninismo” quando Lênin é visto através da interpretação de Stalin. Na realidade, o marxismo-leninismo é essencialmente a interpretação de Lênin que nos é dada por Stalin1.
Stalin nos deu uma célebre definição do “leninismo”. Como se sabe, Stalin gostava das definições e possuía uma incomum capacidade didática ao apresentá-las; não tinha, em face das definições, a prudência e a desconfiança de Lênin.

“O leninismo é o marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária. Mais exatamente: o leninismo é a teoria e a prática da revolução proletária em geral, a teoria e a prática da ditadura do proletariado em particular” (Ibdem, p. 10).

Pode-se observar que nem todo Marx está presente em Lênin, nem toda a excepcional dimensão de sua visão teórica (e isso mesmo sem levar em conta os escritos marxianos que Lênin não pudera conhecer). E pode-se observar que existem em Lênin, além de novos desenvolvimentos da teoria e de novas tarefas da ação revolucionária por ele enfrentadas, capacidades e sensibilidades que não existiam em Marx ou que a história não lhe dera ocasião de manifestar.
Não queremos aqui nos deter sobre o modo pelo qual a conexão entre teoria e ação passa historicamente, com Lênin, a um novo nível e atinge uma dimensão qualitativamente diversa.

Todavia, Stalin se dá conta — quando fala de "leninismo” — que não se refere à concepção geral do marxismo que Lênin assumira, mas “ao que há de particular e de novo na obra de Lênin” (Ibidem, p. 9).

É difícil negar que essa definição de Stalin capte o momento em que Lênin se insere na história de modo decisivo, um modo que faz dele o grande dirigente do movimento revolucionário que conhecemos. Desse ponto de vista, cremos que essa definição possa ser aceita; mas recordando o que o apodíctico Stalin esquece — algo que Lênin, ao contrário, tinha bem presente: ou seja, que “todas as definições muito concisas são certamente cômodas, como é o caso das que resumem o essencial do fenômeno em questão, mas revelam-se insuficientes quando se trata de deduzir delas os traços mais essenciais do fenômeno a definir” (v. 22, p. 266). Isso vale também para a definição staliniana de “leninismo”, que deixa na sombra toda uma série de momentos essenciais do pensamento de Lênin. Basta pensar na investigação da especificidade russa, que nos fornece também o exemplo de um método de investigação aplicável a outras realidades históricas; basta pensar na teoria do partido, que não pode ser reabsorvida na referência “à teoria e tática da revolução proletária em geral, da ditadura do proletariado em particular”.

Concluindo: é preciso voltar hoje a uma leitura não dogmática, não doutrinária de Lênin, mas a uma leitura guiada pelo senso da historicidade, capaz de estabelecer a colocação histórico-política e a riqueza da articulação do pensamento e da ação de Lênin. Uma leitura capaz de recuperar a relação entre método e teoria que lhe era própria e, por isso, a visão crítica do seu pensamento, única que pode ser fecunda.

Isso significa que é preciso libertar-se da mediação deformante do período da direção de Stalin, mas sem repetir o erro que Stalin cometeu: o de ignorar que as mediações existem, não podem ser canceladas; por isso, elas devem ser também atentamente estudadas, pelo que foram, pelas razões históricas profundas que as determinaram, já que só assim poderão ser criticamente superadas.

Nota: 1 CF. Valentino Gerratana. Lo stalinismo teorico. In Rinascita, no 43, ano 26, outubro de 1969.

Fonte: GRUPPI, Luciano. O pensamento de Lênin. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 297-308.


Luciano Gruppi (1920-2003), teórico e dirigente comunista italiano, escreveu na revista Critica marxista e organizou os últimos volumes das Obras de Palmiro Togliatti; é autor de uma valiosa Introdução ao estudo de Gramsci (1987); vários de seus livros foram traduzidos no Brasil: O pensamento de Lênin, O conceito de hegemonia em Gramsci, Tudo começou com Maquiavel.

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