Síria e a
nova geopolítica do Oriente Médio
Por IHU On-Line
Khaled
Fouad Allam é sociólogo e político argelino, naturalizado italiano. Atualmente
leciona na Universidade de Trieste, na Itália. Confira a entrevista.
IHU On-Line
– Qual a origem do conflito político na Síria? Como descreve os confrontos que
ocorrem no país desde 2011, onde parte da população quer a queda do regime de
Assad e outros defendem sua continuação? Quais são as raízes históricas desse
conflito, que explodiu em 2011?
Khaled
Fouad Allam – Diferentemente de quanto aconteceu nos outros países árabes,
o conflito político que se desencadeou na Síria é o produto da “primavera
árabe”, mas é também o resultado de uma situação relativamente singular. O
regime alaouitaha, sempre visto
como um regime “laico”, no qual coexistem pacificamente as minorias
étnico-religiosas – curdos, armênios, drusos, sunitas, cristãos, xiitas – e os alaouiti representam uns 10% da
população. Mas, para manter certa coesão, o regime usou a violência política
como modalidade de estruturação do Estado. Nos momentos de crise o Estado usou
a violência para manter a própria legitimidade. O que ocorreu em 2011 em escala
nacional reforça quanto havia ocorrido em 1981 em escala local. A “primavera
árabe” desencadeou, pois, uma generalização do conflito sobre todo o território
nacional.
IHU
On-Line – Por que, diferentemente dos regimes da Tunísia e do Egito, o
regime ditatorial de Assad consegue resistir aos conflitos e se manter no
poder?
Khaled
Fouad Allam – Sobre as revoluções árabes, pode-se dizer que esta parte do
mundo sai de um ciclo histórico para entrar num outro que representa uma
incógnita. Mas há profundas diferenças entre as revoluções dos anos 1950 e 1960
no mundo árabe e as de hoje: o fim do nacionalismo árabe e o nascimento de um
novo fenômeno que chamamos “islamo-nacionalismo”, no qual as novas gerações
procuram resolver aquilo que para seus progenitores era um conflito, vale
dizer, a relação entre nacionalismo e islã. Isso explica em parte o crescimento
exponencial do fundamentalismo e o retorno do debate político sobre estado e a shari’a. Vão neste sentido os
hodiernos conflitos políticos e sociais na Tunísia e no Egito,
centrados na questão feminina na Tunísia
e no tratamento das minorias religiosas no Egito. Em ambos os países a norma islâmica discrimina entre homens
e mulheres e entre muçulmanos e não muçulmanos.
IHU On-Line
– Qual foi a influência da Primavera Árabe nos conflitos da Síria? Qual
foi a relevância social e política das manifestações e qual seu reflexo
atual?
Khaled Fouad Allam – Os regimes árabes são regimes autoritários que
podem se tornar despóticos. Em parte isso explica como a construção do
estado-nação no século XX se tenha desenvolvido num contexto de guerra fria, de
forte influência da União Soviética que apoiava os países não alinhados e na
qual grande parte da classe dirigente provinha das academias militares. Por
conseguinte, no decurso do século XX, o estado no mundo árabe se construiu
contra a própria sociedade, e as derivas autoritárias cancelaram frequentemente
os direitos humanos e todas as formas de liberdade pública. Isso explica também
como precisamente nos anos 1960 e 1970 se tenha desenvolvido a contestação
islamita em todos os países árabes, e como esta tenha sido reprimida pelos
mesmos regimes. A propósito, assinalo os estudos de Gilles Kepel e de Robert Mitchelise e o meu ensaio sobre
“O islã global”.
IHU
On-Line – Como compreender a permanência de um regime ditatorial em
pleno século XXI?
Khaled
Fouad Allam – Em quase todos os países árabes, e entre eles a Síria, os regimes políticos são de
tipo dinástico, e sua manutenção no tempo não se baseou sobre o princípio
democrático, mas sobre o autoritarismo.
IHU
On-Line – Por quais razões China e Rússia vetaram a resolução contra o
governo de Assad, no Conselho de Segurança da ONU? Como esses países se beneficiam
com o conflito armado?
Khaled
Fouad Allam – Em particular, a Rússia sempre tem sido um aliado estratégico
da Síria, tanto durante como após a guerra fria; o exército sírio foi formado
pelos russos. Do ponto de vista geopolítico, tanto a China como a Rússia
consideram a Síria o epicentro do Oriente Médio: quando se despreza
a Síria, se despreza toda a
região, com graves consequências sobre as minorias muçulmanas na Rússia e na
China. Para estes países, a Síria é uma importante cunha da geopolítica do
Oriente Médio.
IHU
On-Line – Qual é a participação da religião na política desenvolvida na
Síria? Ela interfere nas decisões políticas e nos rumos do país? A “guerra
civil” instalada no país tem um fundamento religioso?
Khaled
Fouad Allam – As relações entre religião e política na Síria se distinguem
daquelas dos outros países árabes, porque existe certa forma de laicismo. Mas
isso não significa que não se tenha desenvolvido o fundamentalismo islâmico. Já
no início dos anos 1980, na onda da revolução iraniana, houve importantes
manifestações de fundamentalistas islâmicos, que foram reprimidas pelo governo
da época.
IHU
On-Line – Como muçulmanos xiitas e sunitas se relacionam no país?
Khaled
Fouad Allam – Na realidade, as relações entre xiitas
e sunitas, tanto na Síria como alhures, sempre têm sido tensas; o conflito
na base do divórcio (fitna)
entre sunitas e xiitas jamais foi sanado. Isso não impede que, no plano
sociológico, existam lugares de convivência relativamente pacíficos que, no
entanto, podem explodir nos momentos de crise, como no atual.
IHU
On-Line – Qual é a relação entre muçulmanos e demais religiões presentes
na Síria? Há dialogo inter-religioso, especialmente com os cristãos?
Khaled
Fouad Allam – Desde sempre a Síria
é um exemplo de coexistência entre muçulmanos
e outras confissões. Mas as ideologias e os vários nacionalismos podem pôr em
crise a coexistência entre os grupos.
IHU
On-Line – Qual é a atual situação dos cristãos na Síria e como se
manifestam frente a permanência do regime de Assad? Há medo e risco de que,
caso haja abertura democrática, os cristãos sejam perseguidos?
Khaled
Fouad Allam – Na Síria, os cristãos
se sentem em perigo por causa da guerra civil em curso, e sua comunidade se
encontra ameaçada. Isso explica os temores manifestados pelas hierarquias
cristãs no país Síria diante da atual situação.
IHU
On-Line – Qual o significado da declaração de Assad, quando ele afirma
que está se formando um novo mapa geoestratégico que alinha a Síria, a Turquia,
o Irã, a Rússia juntando política, interesses e infraestrutura? O Oriente Médio
está se modificando?
Khaled
Fouad Allam – O mundo árabe está mudando totalmente, está entrando num novo
ciclo de sua história. A Síria representa
a pedra angular, enquanto há aí novos atores políticos, a Turquia e o Irã, países que veem nela o núcleo de
novas hegemonias regionais. E tudo isso está evoluindo ante a ausência da
Europa.
IHU
On-Line – Quais são os conflitos entre Israel e Síria?
Khaled
Fouad Allam – Além da questão do Golã,
é evidente que Israel está
perdendo sua “cintura de segurança”, que era formada pelo Egito, mas em parte também pela Síria. Isso torna muito mais complexa
a crise
síria, e haverá um notável impacto sobre todos os equilíbrios mundiais.
IHU
On-Line – Com quais países do Oriente Médio a Síria se relaciona e com
quais ela diverge?
Khaled
Fouad Allam – A Síria, que era um país importante dentro da Liga árabe e da Organização da Conferência islâmica,
encontra-se hoje isolada. Todavia, este isolamento é coberto e culminado pela Rússia e pela China.
IHU
On-Line – Como foi o encontro que discutiu a questão política e
religiosa da Síria, organizado pela Associação Sírios Livres na Itália? Quais
os principais apontamentos do jesuíta Paolo Dall'Oglio?
Khaled
Fouad Allam – O Pe. Dall’Oglio testemunhou a
situação na Síria vista a partir de seu mosteiro, uma experiência bela, mas
também dramática. Durante um encontro, do qual participei junto ao padre Dall'Oglio e a Massimo Cacciari, os sírios, além
de suas diversidades étnicas e religiosas, manifestaram um desejo de unidade –
e era recorrente o lema “o povo sírio é uno e único”. Mas tudo isto é
construído politicamente.
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