26 de abril de 2017

Desobediência civil e Greve Geral!🚩


#NãoàReformadaPrevidência! – #ForaTemer! – #DiretasJá!

Nessa hora tão incerta na vida do país, peço desculpas aos amigos por estar, possivelmente, repetindo o óbvio: a greve geral do dia 28/4 próximo é uma oportunidade única.

De uma só tacada, teremos a chance de derrotar publicamente a política de desmonte de direitos sociais e desnacionalização da economia empreendida por Temer e sua quadrilha corrupta.

Que não reste dúvida, se a camarilha que se apossou do poder não conseguir provar a seus patrões do capital financeiro e da mídia monopolista a sua capacidade de aprovar a nefanda "reforma" da Previdência, a rota de de declínio será irreversível. Atolada em escândalos, rejeitada por mais de noventa por cento dos brasileiros e sem ter quem lhe dê apoio, o único caminho da ordem golpista será sair de cena, dado o seu isolamento.

Por isso, todo esforço será pouco para coroar de êxito a paralisação do sexta. Todos nós, dos mais diferentes setores da sociedade deveremos fazer a nossa parte, incitando a desobediência civil pacífica, melhor forma de apoio às ações do sindicalismo e dos movimentos sociais.


7 de abril de 2017

O Moderno e o PT

Por Marcelo Barbosa

Artigo produzido para a conjuntura do quinto Congresso do PT, há dois anos atrás, e que pelo visto, se mantém atual

Concebido em aberta ruptura com a esquerda de tradicional implantação ao fim de década de 1970 – leia-se comunistas e trabalhistas – o PT nasceu de costas para o Estado e de frente para a sociedade civil. As questões capazes de mobilizar a legenda de Lula poucas vezes coincidiram com aquelas formuladas pelas agremiações conduzidas então por personalidades como Prestes, João Amazonas ou ainda Brizola. Com isso, toda uma rica agenda de lutas anterior ao marco da eclosão do ciclo das greves do ABC paulista, a partir de 1978, derivou para um papel secundário. Guardada no baú das relíquias, a questão nacional, sobretudo o papel do Estado no combate aos vários níveis de subdesenvolvimento do país, cedeu protagonismo ao avanço de uma pauta democrática essencialmente compreendida como cidadania econômica: aumento de salário, acesso a terra, direito a moradia, entre outros itens afins. A ideia de construir o moderno com base no rompimento com as formas de dependência de nossa periferia à dominação dos países centrais, pedra de toque das concepções de construção do moderno da velha esquerda, encontrou pouco eco no interior do petismo.

Para o chamado PT das origens, nenhum sentido podia ser extraído da indagação acerca da busca do moderno em uma sociedade de extrema concentração de renda, cuja passagem para o capitalismo monopolista de Estado demandara a instalação de uma ditadura civil-militar, em 1964. Perseguindo essa ótica, empréstimo ao pensamento uspiano – de Florestan Fernandes a Chico de Oliveira, entre muitos outros – o Novo e Velho apareciam perfeitamente fundidos e entrosados na paisagem social brasileira. Eram molares da mesma engrenagem. No caso brasileiro, a obtenção do posto de 6ª economia mundial surgira sem a necessidade de ajustar contas com as instituições pré-capitalistas existentes, aí incluído o latifúndio. Em outras palavras, o moderno já predominava em nossas relações sociais a reboque das lógicas das tendências à urbanização e industrialização. E, mais. O desenvolvimento capitalista deflagrado nesse processo tornara mais agudas as desigualdades de classe, região e renda, em todo território nacional. Conclusão: o tempo para a conquista de objetivos intermediários como as reformas de base se esgotara. A luta pela conquista do socialismo vibrava na ordem do dia.

A projeção dos pais fundadores do PT previa atitudes como o repúdio às alianças com o chamado centro político, estando interditada, ainda, a possibilidade de apoio a qualquer coalizão de natureza pluriclassista. A esquerda social caminharia antes só que mal acompanhada. De preferência, exaltando os valores da democracia de base, da nitidez ideológica e da crítica à trajetória republicana brasileira. Ação política? A única legítima consistiria na intervenção de baixo para cima, por meio dos instrumentos da vida associativa, a exemplo dos sindicatos e as Comunidades Eclesiais. Mais revolucionário na retórica que na prática, essa modalidade de petismo das origens deu forma a um grupo de práticas voltadas para a exaltação ao chamado poder local, procedimento de evasão à real disputa do poder, mas que permitiu o acúmulo de forças da legenda nas conjunturas de grande instabilidade verificadas durante os primeiros anos do processo de redemocratização. Residual nos dias de hoje, essa variante ainda sobrevive em manifestações como a deificação acrítica de políticas públicas como o orçamento participativo.

Os saudosistas do modelo de militância partidária presente na infância da atuação do PT defendem com ardor a atitude empreendida pela legenda naqueles anos de formação. Por óbvio, promovem comparações. Com alguma procedência, apontam o processo pelo qual o petismo se manteve unido e em crescimento ao longo das décadas de 1980 e 1990, ao mesmo tempo em que a esquerda tradicional caminhava para a divisão e o descrédito. O problema desse argumento, no fundamental correto, reside na sua insuficiência: se o PT encarnasse apenas a crítica aos contingentes da esquerda que o precederam, nem de longe poderia cumprir um papel de destaque na vida pública brasileira. Ou seja, já em seus primeiros anos, vicejavam no terreno da cultura política do PT as sementes de uma visão mais assente à complexidade de uma sociedade de traços contraditórios como a nossa.

Personagem de sua própria história, o PT fez coexistir em seu projeto inúmeras identidades*. Algumas dessas caracterizações, com vida curta. Outras vieram para ficar e firmaram-se no acervo de experiências empreendidas pelo partido. Entre essas florações, uma classe de propostas, que diferindo da primeira das constelações teóricas formuladas pela agremiação, exibia algum grau de diálogo com a questão proposta ao início deste texto. Por esse ângulo, construir o moderno requeria o enfrentamento das oligarquias patrimonialistas, o estamento parasitário responsável pelo atraso e a desigualdade de nossa formação social, presente desde o período colonial. Em tal narrativa, o ponto de equilíbrio da atuação da esquerda devia se deslocar para o combate à corrupção. Impunha-se, nessa ótica, atacar o método pelo qual as elites decadentes se apropriavam – e se apropriam – das funções do Estado para reproduzir seus interesses particulares, entravando assim o acesso ao poder das camadas comprometidas com a democratização da vida pública, tais como o proletariado moderno e o empresariado produtivo.

Com vistas a demarcar suas posições, esses setores do petismo radicalmente comprometidos com a reforma do Estado buscaram distinguir seus pontos de vista da parcela moralista e influenciada pela mídia monopolista. Com acerto, preferiam não ser confundidos com o fenômeno tratado pela ciência política brasileira pela designação de “udenismo”.  Não à toa, adotaram a defesa de uma pauta liberal no que refere aos costumes, com ênfase na liberação das drogas ou ainda, a titulo de ilustração, a defesa da descriminalização do aborto – nada obstante uma certa presença de militantes católicos nestas correntes de opinião. Mantendo a coerência, jamais esconderam a sua solidariedade às chamadas “minorias” que, na realidade, conformam grandes maiorias no vasto mosaico das relações sociais presentes no país:  mulheres, negros, grupos LGBT, índios, ambientalistas, quilombolas, entre outros.

Plural como as próprias camadas médias donde retira força, esse segmento do petismo, de igual maneira, nos últimos anos, cresceu a ponto de espalhar sua influência para a fora da legenda da estrela, fecundando o debate entre áreas do PSOL e da Rede Sustentabilidade, da senadora Marina Silva. Até mesmo no interior do governo Dilma tais tendências assumiram papel de destaque na produção de ideias: a mais influente entre muitas, a denúncia da “governabilidade” baseada no pacto PT-PMDB, fonte de paralisia (sic) e renúncia ao enfrentamento com os setores ditos conservadores do patronato político brasileiro. Fortemente vinculado à política, a prática desses agrupamentos pouco frequenta o tema econômico. De uma maneira geral, pouco têm a dizer, por fora da abstração de princípio, sobre a contradição que cinde qualquer sociedade capitalista: o antagonismo entre capital e trabalho.

Por fim, esse inventário – bastante ligeiro por sinal – das respostas oferecidas pelo PT sobre o tema da construção do moderno, não deve omitir a menção a um terceiro quadro de referências. Fenômeno recente, tal posição conta pouco mais de uma década. Sua principal atitude se enuncia na busca pela recuperação (seletiva) de alguns de elementos da cultura política anterior à fundação do partido de Lula.   Sem renegar as respostas fornecidas pelo PT das origens – repita-se, a afirmação da identidade socialista, para uns, ou o combate ao patrimonialismo, para outros – essa nova síntese supõe que: forçar a passagem ao moderno implica resolver a questão social. Cumpre, assim, impulsionar a unidade e a capacidade de mobilização das forças comprometidas com a erradicação da desigualdade no país, marca constitutiva do atraso de nossa formação social desde sempre. Inspirado no pensamento de autores como Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Nelson Werneck Sodré e Ignácio Rangel, entre outros, mas ao mesmo tempo incorporando contribuições atuais como as de Conceição Tavares e Theotonio dos Santos, apenas para citar dois autores vivos, esse reforço de ideias à matriz original petista, pelo que tudo indica, deita raízes sobre o aprofundamento contínuo dos espaços de democracia política na sociedade. Mas, não apenas isso.

Trata-se, igualmente, de transformar o atual caráter das instituições de Estado, colocando-as a serviço dos objetivos de um projeto de nação capaz de garantir a todos os brasileiros o exercício dos direitos e garantias individuais e, sobretudo coletivos, em boa parte previstos no texto da Constituição da República, de 1988. Caminho brasileiro para o socialismo, a implantação desse projeto nacional, de natureza não autárquica – porque aberto à integração com a América Latina e África – impõe, no caso do PT, o manejo de três ferramentas: uma frente de centro-esquerda, um programa de reformas estruturais e uma estrutura partidária democrática e transparente.                                                

* As reconstituições do debate de ideias no interior do PT, nos termos propostos neste texto, atêm-se a linhas gerais. Limitam o escopo da questão a um só tema: as estratégias de combate ao atraso estrutural do país. Outros tópicos geraram diferentes tipos de clivagem, conforme o caso das controvérsias acerca das formas de construção partidária, só para citar um dos contenciosos mais polêmicos. Por certo, outras sensibilidades em relação ao moderno existiram – e persistem existindo – no interior da agremiação. Sendo certo, ainda, que há contingentes na estrutura partidária completamente alheios a este tipo de problema teórico. Para estas áreas – presentes, em maior ou menor grau, em todas as tendências partidárias – trata-se apenas de reproduzir a presença da legenda como máquina arrecadadora de votos. Os impasses verificados pelo anseio de definição de uma cultura política adequada não tiram o sono desse tipo de militância já muito há perpassada pela deformidade burocrática.

Sugestão de Leitura

Para uma abordagem concisa, mas consistente e bem fundamentada, da ideia de projeto nacional, ver BENJAMIN, Cezar de Queiroz, A Opção Brasileira. Rio de Janeiro: Contraponto, 1998.

Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX


21 de março de 2017

Republicanismo demais ou de menos?


Por Marcelo Barbosa

E prossegue, como era de se esperar, o ciclo de avaliações das causas do golpe judicial-parlamentar em curso. A maioria dessas reflexões aponta numa direção: o suposto caráter excessivamente amplo das alianças praticadas pelo governo do PT e de seus parceiros. Outras autocríticas, mais afeitas ao aspecto programático, ressaltam a falta de projeto estratégico das administrações petistas desde a posse de Lula, em 2003, crítica essa a qual me filio. Saindo da política (pelo menos em sentido imediato), também há reparos de natureza teórica surgindo. Um deles, a acusação o de que atitude do PT, no poder, seria “republicana” demais. Por essa ótica, Lula, e depois Dilma, teriam confiado em demasia no compromisso das elites com uma legalidade democrática a que essas mesmas classes dominantes não hesitaram em romper desde o momento da eleição de 2014.  Mas, será que as esquerdas à frente do governo – fica a pergunta – foram tão republicanas assim?

Responder a essa questão, de forma categórica, demanda um conhecimento especializado o qual, francamente, não disponho. Só me aventuro por esse debate por uma razão: a sua natureza não exclusivamente acadêmica. Isto é, atribuir alguma significação a termos como “legalidade” ou ainda “republicanismo” responde a necessidades práticas, derivadas do enfrentamento cotidiano ditado pela política.

Sendo assim, não cabe nesse texto a promoção de uma exegese dos trabalhos de autores como Pettit, Skinner ou ainda Habermas, nem fornecer uma definição pronta do que se possa entender por republicanismo ou neorrepublicanismo*. Cumpre apenas constatar a irrupção, nas últimas décadas, de uma junção de diferentes abordagens, presentes sobretudo nas áreas dos estudos jurídicos e da filosofia política, tendo por pressuposto a recuperação da importância da expressão latina res publica (coisa pública), contraposta à res privata (a esfera privada e familiar) e, por fio condutor, a prevalência do interesse coletivo sobre o particular. Repartido em infinidade de correntes, o republicanismo se une, no entanto, na defesa da ampliação dos espaços de soberania popular, desde que conjugada à manutenção dos procedimentos formais de alternância de poder e respeito às minorias, garantias sem as quais a forma de governo denominada república sofre o risco de derivar para a autocracia e o despotismo.

É possível depreender, o republicanismo contemporâneo encontrou ressonância na qualidade de resposta à crise que as duas maiores tendências da esquerda mundial – o socialismo e a socialdemocracia – experimentaram nos últimos quarenta anos. Não à toa, a corrente atingiu o ponto culminante de sua influência por ocasião do marco simbólico da queda do Muro de Berlim. Coincidentemente, o marxismo, nessa mesma quadra, também atravessava uma forte crise de descrédito, em todas as suas ramificações, por sua (alegada) incapacidade de conciliar a busca da igualdade com a liberdade dos indivíduos. Em tais condições, o atrativo republicanista era quase irresistível: tratava-se da única manifestação de pensamento social com capacidade de travar a disputa ideológica com o liberalismo em igualdade condições. Sem maior divulgação nos círculos do sindicalismo e dos movimentos operário tradicional, a retórica republicana de acesso a direitos fundamentais ecoou, no entanto, fortemente nos chamados movimentos sociais, para cobrar: acesso à moradia, à terra, à saúde, informação, à políticas inclusivas como bolsa família**.

Acredito que possa invocar a minha experiência pessoal – durante os anos noventa do século XX – para reconstituir a influência das versões republicanas, sobretudo a de Habermas, sob a minha área de atuação profissional, o direito. Para nós, operadores jurídicos (pelo menos aqueles comprometidos com a democracia e o socialismo) era como se uma nova aurora se anunciasse no terreno das ciências da sociedade. E que o campo teórico capaz de reunir de Marx a Gramsci encontrasse atualização nas (então) recentes contribuições reunidas em obras como Para a reconstrução do Materialismo Histórico, possibilitando, assim, o diálogo entre as tradições revolucionárias de 1917 e de 1789. A pedra de toque desse relacionamento? A categoria designada “bem comum”. Um conceito que, muito condizente com nossas expectativas (mas também com nossas ilusões), permitia enunciar conteúdos muito distintos, sob o manto de uma indeterminação convertida em virtude.

Vítima do próprio sucesso, o republicanismo sofreu a má fortuna de todas as expressões teóricas que deixam o mundo da academia para reinar no senso comum da mídia, dos programas partidários e das conversas de botequim: deslocou-se seu sentido originário. A prevalência do interesse coletivo sobre os interesses privados transmutou-se – atendendo ao imaginário das camadas médias brasileiras – em luta contra o patrimonialismo das velhas elites e esforço de erradicação do fenômeno da corrupção administrativa (tudo como se a corrupção não fosse algo de inato ao capitalismo). Sensível a essa agenda, os governos da presidenta Dilma, sobrelevaram a moralidade sobre todos os demais princípios dentro administração pública. Um equívoco, sem dúvida. Não é preciso ser republicano para entender que, numa democracia representativa, o respeito ao império da lei assume prevalência e subordina todos os demais princípios.

Resumo da ópera: o nosso governo e seus aliados permitiram, por amor à transparência e a “boa governança”, a partir de 2013, a germinação e o desenvolvimento de um foco conspirativo dentro do aparelho de Estado, intitulado Operação Lava Jato. Republicanismo em excesso? Tudo a leva a pensar em contrário. Uma democracia digna desse nome deve, primeiramente, assegurar a todos (inclusive a empreiteiros supostamente corruptos) o acesso a garantias individuais consagradas desde o iluminismo, tais como o habeas corpus, a presunção de inocência, o amplo direito de defesa ou princípio do contraditório. Caso contrário, aos poucos, deixa de ser uma democracia. Transforma-se, paulatinamente, em um Estado de Exceção, no qual se pode cometer toda a sorte de arbitrariedades, inclusive remover do cargo uma governante sem crime de responsabilidade.

* Para uma panorâmica do republicanismo (ou neorrepublicanismo), aconselho o contato com textos de um autor que, curiosamente, não se define como estritamente republicanista: BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

** No Brasil, o momento mais luminoso dessa voga republicanista, sem dúvida, aconteceu durante o período da luta contra as privatizações de empresas públicas sob o consulado FHC. Momento em que esse “significante vazio” – para usar o jargão lacaniano – chamado bem comum, serviu de intercessão entre as aspirações de atores sociais muito distintos, empurrando o movimento sindical sadiamente de sua pauta econômica para uma parceria com esse mesmo Ministério Público Federal – hoje tão macartista e apequenado – na luta pela soberania econômica do povo brasileiro. Sem essa coalizão, o processo de privatizações daquela era teria sido imensamente mais lesivo, incluindo Petrobrás e o Banco do Brasil na cesta de patrimônios do povo brasileiro oferecidos na bacia das almas ao capital financeiro internacional. Vibrando na memória dos lutadores sociais, essa página de luta inscreveu o republicanismo, definitivamente, no rol das contribuições teóricas ao arsenal de guerra do pensamento social progressista.

Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX



 




21 de fevereiro de 2017

Os governos do PT e a burguesia “nacional”


Por Marcelo Barbosa

Em tom de condenação, alguns setores do campo democrático-popular “acusam” os governos do PT e de seus aliados de promoverem, nos últimos 13 anos, uma suposta conciliação entre as forças do capital e do trabalho, em favor de um projeto de (limitado) crescimento econômico com (restrita) distribuição de renda. Por esse ponto de vista, a atual ruptura institucional que o país atravessa seria decorrente do esgotamento de uma “tática” pautada pela moderação de atitudes no campo da economia (obediência ao chamado tripé macroeconômico) e da política (alianças pela governabilidade). Diante de tal diagnóstico – bastante crítico, por sinal – caberia indagar, tendo em vista o muito de positivo que ocorreu no Brasil desde janeiro de 2003: em que medida teria sido possível fazer diferente do foi feito?

Sem querer assumir o papel de advogado das escolhas do PT – algumas bem equivocadas, a exemplo da reforma da previdência, em 2003 – considero útil a reconstituição (sintética que seja) das condições nas quais os chamados governos progressistas foram chamados a assumir o poder. Em particular, a conjuntura de cerco produzida à época. Um quadro composto por enormes dificuldades, entre as quais duas quase insuperáveis: o risco de uma moratória das dívidas interna e externa por conta do estado de insolvência do país após o consulado FHC somado à extrema fragilidade da sustentação de um presidente vitorioso nas urnas, mas sem maioria no Legislativo. Para agravar situação, a nova ordem precisava, ainda, no plano simbólico, corresponder às expectativas, geradas aqui e no exterior, pela a investida da esquerda ao poder numa região do Terceiro Mundo considerada quintal da dominação neoliberal.

Como responder a esse tipo de desafio? No início do primeiro governo Lula, essa dúvida frequentava a mente de todos aqueles, de alguma maneira, envolvidos nos esforços de consolidação do governo progressista. No caso, o repertório de escolhas preconizado pelas tendências mais à esquerda – inclusive aquelas com representação dentro do próprio PT – envolvia a valorização dos ensinamentos da tradição marxista, em especial, o rompimento e a denúncia das limitações da democracia parlamentar, com a correspondente ênfase na organização e mobilização dos setores de baixo da pirâmide social. Caminho esse recusado pela liderança petista, por várias razões. A mais expressiva delas, a hipoteca a ser quitada por esse tipo de opção, em particular a necessidade de garantir a sobrevivência da nova ordem por todo tipo de meios, inclusive aqueles completamente alheios à prática dos partidos de massa, como o recurso à violência revolucionária presente na opção pela luta armada ou a guerra civil.

Afastada a via do enfrentamento, incumbia a montagem de alianças não só políticas, mas também sociais. Para atender ao primeiro critério – após uma desastrada tentativa de uma coalizão com partidos de aluguel – surgiu a proposta de ação conjunta com o malsinado PMDB. E visando promover a sustentação do governo do PT e de seus aliados com a sociedade civil, em especial junto às entidades de representação empresarial, começou a se desenhar, especialmente a partir da posse de Guido Mantega na pasta da Fazenda, um diálogo com a chamada burguesia “nacional”.

Esse entendimento não buscou, ao contrário de certas interpretações, criar condições para a continuidade da aplicação, sob novas condições, das diretrizes neoliberais praticadas durante o consulado tucano. Tampouco o PT – ainda fortemente atado à sua origem no sindicalismo e nos movimentos sociais – tornou-se uma representação partidária do grande capital, como pretenderam alguns autores, abusando da dialética. Ao inverso, os termos da negociação entre as forças do capital e do trabalho, naquele dado momento histórico, visaram a adoção de uma orientação econômica alternativa á receita intitulada pelos analistas do “Consenso de Washington”.

Parceira – pouco confiável – na criação de um ambiente econômico livre da coerção neoliberal, a chamada burguesia “nacional”, por volta da primeira década do século XXI, havia perdido qualquer pretensão à autonomia que tivesse cultivado, no passado, fosse em 1930 ou no pré-64. Acostumara-se a ser tutelada: primeiro pelos militares durante a ditadura civil-militar e, em seguida, pelos rentistas da alta finança, no consulado tucano. Sem a menor cerimônia deslocara-se à direita no AI-5, para duas décadas depois, derivar ao centro, na promulgação da Constituição de 1988. Muito provavelmente, por isso, quando a esquerda triunfou nas eleições de outubro de 2002, as elites empresariais “nacionais” não endossaram as políticas de desestabilização do novo poder propostas pelo consórcio entre os bancos de investimento, mídia monopolista e das empresas transnacionais, a quem se poderia designar por burguesia “associada”. Isto é, o empresariado nacional preferiu “pagar para ver” e esperar a atitude dos (então) novos ocupantes do Planalto.

Coerente com a sua atitude de prudência – ditada pela necessidade de romper o isolamento político que lhe queriam impor – o PT e seus parceiros aceitaram a aproximação não só da parcela produtiva do capital brasileiro, como também de franjas do rentismo representadas pelos bancos de varejo. Foram complexos os protocolos referentes ao relacionamento entre classes antagônicas registrada no período. Não cabe aqui comentar em detalhe os itens dessa aliança, exceto um aspecto: entre 2005 e pelo menos 2011, os sucessivos governos progressistas asseguraram uma orientação ao capitalismo brasileiro bastante favorável à expansão das oportunidades de lucro das empresas nacionais, por via do crescimento do mercado interno e da massa salarial. Todos os setores produtivos – e de crédito – se beneficiaram dessa espiral, reforçando, pelo alto, a sustentação política de Lula e de Dilma. Contudo, áreas como a indústria naval, aeronáutica (Embraer) e a engenharia de projetos (em especial no ramo da exploração de petróleo), entre outros, se credenciaram a participar de algo mais do que coalizões de poder episódicas. Por seu poder de empuxo sobre a economia e capacidade de associação com o Estado, tais segmentos produtivos se destacaram pela capacidade de integração do progresso técnico ao processo produtivo e geração de mão de obra qualificada. Algo de precioso em países em desenvolvimento.

Olhando em retrospecto, a simbiose de interesses entre diversas classes ou frações de classes – inclusive o setor mais dinâmico da burguesia ­– encontraria seu melhor desempenho, é de se presumir, caso incluída no âmbito de um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de abarcar não apenas objetivos econômicos, mas sobretudo conquistas políticas e sociais. Essa agenda, apenas rascunhada pela liderança petista, jamais foi elevada à condição de arte-final. Possivelmente em face do seu potencial de conflito. No entanto, tal explicitação dos interesses da representação dos trabalhadores dentro da aliança era de fundamental importância, pois serviria de antídoto contra a doença mais frequente nos processos de frente comum entre capital e trabalho: a ilusão de classe.

Retornando à pergunta que nos trouxe aqui, ao que tudo indica, não consistiu num equívoco apostar numa política de alianças sociais amplas, capazes de integrar a “burguesia” na base de sustentação dos governos progressistas. Provavelmente, não havia outra atitude a ser tomada. A falha – pelo menos até o momento – foi não distinguir entre os diferentes setores das elites empresariais e seus distintos interesses – ora antagônicos, ora complementares – a um projeto nacional de desenvolvimento com distribuição de renda. É de se desejar que ainda haja tempo para uma correção de rumos.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX



O comportamento da burguesia “nacional” nas crises políticas


Por Marcelo Barbosa

Diante de mais um episódio de interrupção da experiência democrática brasileira – o mais grave desde 1964 – os setores da esquerda se voltam para a reflexão, promovendo um balanço de erros e acertos do ciclo iniciado com a posse de Lula, em 2003. Entre os itens sob exame, o estado das relações entre capital e trabalho. Para muitos, os governos do PT e seus aliados fizeram uma aposta equivocada: julgaram possível uma aliança de classes, estável no longo prazo, em torno da execução de um programa de crescimento econômico com distribuição de renda (ainda que limitada). Na opinião dos adeptos de profecias autorrealizadas, esse esforço, desde o seu início, se via condenado ao insucesso. Por muitas razões, mas com destaque para a inconstância das atitudes de um dos sócios do “empreendimento”, a chamada burguesia “nacional”.
Por certo, essa dissensão entre as esquerdas se espalha por outros tópicos: formato da frente política, projeções estratégicas, limites da luta institucional, aspectos programáticos e muito mais. No entanto, por considerar não só viável – mas também necessário – o relacionamento da área progressista com setores do centro, parece ser importante buscar alguma compreensão do comportamento do grande e médio capital na arena política. Isso pode ser bom para nos livrar tanto do preconceito quanto da ilusão.

A primeira dificuldade a uma investigação das motivações das elites empresariais concerne ao debate em torno da adequação e abrangência do termo burguesia para classificar tais estratos*. Como se sabe, na descrição dessa classe presente na obra de Marx e seus discípulos – orientada para a reconstituição do seu papel na reprodução material e ideológica do capitalismo – emerge um recorte muito preciso: trata-se do seguimento homogêneo em termos sociais, psicológicos e por vezes, religiosos, que detém a propriedade das riquezas e dos meios de produção e, portanto, concentra o poder econômico e político numa sociedade capitalista. Homogeneidade que, na hipótese, não implica ausência de diferenciações, pois o setor apresenta inúmeras distinções em relações à sua escala: grande, pequena e média burguesia. Ou, ainda, quanto às atividades de onde irradia influência: comércio, indústria, bancos, agronegócio, produção de serviços, entre outros ramos.

Não cabe, neste espaço, questionar a validade dessa caracterização obtida junto aos clássicos. Terminologicamente adequado, ou não, o conceito de burguesia ocupa lugar de destaque no panorama do pensamento social brasileiro, em especial no que se refere às discussões acerca do caráter “nacional” ou “entreguista” das elites empresariais. E, com registros absolutamente distintos, refletindo a pluralidade do debate sobre o tema. Na tradição cepalina – isebiana (convalidada pelas teses do PCB, no pré-64), os processos de industrialização em curso a partir de 1930, teriam por consequencia o acirramento das contradições entre os interesses econômicos locais e os externos, gerando em setores das classes dominantes a consciência da necessidade de uma aliança com o proletariado, com vistas ao estabelecimento de um desenvolvimento capitalista independente no país, esse último concebido como via de erradicação do atraso estrutural brasileiro em termos políticos, sociais e econômicos, em especial no que diz respeito à sua estrutura agrária.

Refutando a visão cepalina, os próceres da chamada teoria da dependência negaram à burguesia “brasileira” um caráter autônomo. Na crença dos setores ligados a essa interpretação do desenvolvimento histórico do país, mesmo no período anterior ao golpe militar-civil de 1964, e da conseqüente passagem do capitalismo brasileiro a uma etapa monopolista, a atitude que singularizaria o empresariado da nossa periferia – nada obstante a presença de conflitos sobre questões secundárias – seria o alinhamento aos países centrais e suas empresas. Ou seja, ao segmento nacional dos capitalistas, qualquer processo de democratização profunda da sociedade que acenasse para a modificação do perfil de distribuição de renda e a conseqüente afirmação (tímida que fosse) do caráter social do regime de propriedade seria inaceitável. Assim, entre se aliar ao povo ou à alta finança internacional, a burguesia brasileira sempre historicamente preferiu a segunda opção.

Aparentemente, o julgamento implacável da história parece ter dado razão aos teóricos da dependência. De fato, todo o debate, inclusive acadêmico, aqui e lá fora, evoluiu no sentido de negar um caráter autônomo às aspirações do empresariado dos países periféricos. Neste sentido, o termo “burguesia interna”, formulado por Poulantzas ainda no período de gestação do neoliberialismo – em meio à década de 1970 – talvez substitua, com vantagem, a categoria “burguesia nacional”, pois tem o mérito de sinalizar a necessidade de identificar as mudanças no comportamento dessa fração de classe nos quadros da chamada “globalização”, particularmente a diminuição do ímpeto antiimperialista desse ator social.

Mesmo assim, caberia liminarmente, enunciar a seguinte ordem de reserva ao argumento dos teóricos da dependência: mais do que o alinhamento ao imperialismo, o que distingue o comportamento da representação política do capital, tratada nos clássicos por “burguesia nacional”, é o caráter pendular de sua atuação. Assim, no século XX, esse segmento esteve junto ao povo em 1930, 1961, 1985 e 1988 (na promulgação da Constituição). Em contrário procedimento, vinculou-se à reação interna e externa, nos episódios do Estado novo de 1937, na tentativa golpista de 1954, no movimento civil-militar de 1964 e por fim, no consulado de FHC, iniciado em 1994. Seria interessante indagar em que medida as oscilações periódicas da burguesia “nacional” em direção à posições antidemocráticas, para além da influência de fatores objetivos como o aprofundamento das crises cíclicas do capitalismo, não acusam a falta de vocação hegemônica da nossa esquerda no domínio de itens decisivos à conquista e manutenção do poder político: capacidade de mobilização, clareza programática e unidade orgânica de seus agrupamentos, em especial, nas conjunturas históricas como a desse agitado 2016.

Podemos concluir, portanto, a observação da realidade não deu razão e – nem desmentiu inteiramente – nenhuma das duas grandes vertentes explicativas do comportamento das elites empresariais brasileiras. Porém, tornou visíveis, aos agrupamentos da esquerda do espectro político, os riscos subjacentes à aplicação unilateral dos postulados de qualquer uma das duas teses: de um lado, a ameaça da” ilusão de classe” na projeção cepalina e do outro, do isolamento político, na interpretação da dependência.

(*) Será que não deveríamos estar mais atentos à irrupção de uma nova – em termos históricos – camada social que, em condomínio com a burguesia tradicional, governaria o mundo pelo manejo da informação, ciência e da técnica, estando encarregada da administração e reprodução simbólica do capitalismo? Isto é, a parcela dos bilionários do clube do 1%, detentor de mais de 50% da renda mundial: financistas, especialistas em marketing, cientistas, astros da música, cinema e esporte, tecnoburocratas em geral. Nos Gundrisse, Marx alertou para a possibilidade de uma parcela da sociedade com essas características vir a tornar-se dominante.


Publicado no blog Plataforma Política Social.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX

 



26 de janeiro de 2017

Mulheres, negros, ambientalistas, povos originários, LGBTs & cia: um novo sujeito histórico?


A eleição de Donald Trump, entre outros significados, expõe a derrota de uma esquerda (no caso, a do Partido Democrata) mais empenhada na mobilização de temas da cultura e comportamento do que em lançar mão da luta de classes. Um revés que serve de alerta. Isso não apenas em relação aos partidos e movimentos progressistas dos Estados Unidos, mas de todo mundo. Com o trauma, surgem pontos de interrogação: qual o futuro da coalizão formada por jovens, mulheres e “minorias” étnicas – entre outros nexos – empenhadas em promover a crítica dos instrumentos e práticas tradicionais de ação da classe trabalhadora? Qual o saldo de reflexão acerca da prática dos sujeitos históricos surgidos no pós-1968? Por ora, trata-se de perguntas sem respostas. Pelo menos não definitivas. O que se pode fazer, ao calor da hora, consiste na tentativa de reconstituir – em síntese breve – o trajeto dessas propostas em cotejo com as matrizes da teoria onde se reconheceram. Para tanto, há necessidade de voltar no tempo, mais precisamente às origens do protesto anticapitalista.

No projeto crítico dos fundadores do materialismo histórico – Marx e Engels –  o sujeito histórico da transformação da realidade pode ser identificado numa classe: a dos trabalhadores assalariados (urbanos e rurais) e seu aliado de todas as horas, o campesinato. Trata-se de um ator político radicalmente comprometido, por força da exploração de sua força de trabalho, com a socialização dos meios de produzir bens e serviços, aparato em mãos de uma minoria de burgueses possuidores da renda e riqueza em qualquer sociedade capitalista. Desde 1848, quando se tornou visível a olho nu, nas páginas do Manifesto do Partido Comunista, até o presente, esse agente da rebelião contra o poder do capital assumiu várias identidades: operário fabril no Outubro Russo (1917); camponês na China e Vietnam (1949/1975); e até mesmo pequena-burguesia anti-imperialista em Cuba (1959). Modalidade de luta de classes – só que em escala mundial – o antagonismo entre países centrais e periféricos também favoreceu a gênese de uma consciência nacional responsável pelo surgimento de ideologias de conteúdo anti-hegemônico, por todo o terceiro mundo, a exemplo do sandinismo, na Nicarágua ou o nasserismo, no Oriente Médio.

Com poucas variações, a iniciativa desse sujeito irradiado a partir da liderança dos trabalhadores assalariados monopolizou as ações visando construir sociedades socialistas ao redor do globo. Seu mandato, digamos assim, jamais recebeu contestação. Muitas vezes, os trabalhadores obtiveram o auxílio de outros segmentos, como as mulheres e seu memorável movimento sufragista. Porém, essa colaboração sempre ocorria em chave subordinada e nunca em igualdade de condições. Muito possivelmente, por obra de processos de urbanização e expansão das camadas médias, nos últimos cinquenta anos (mudanças verificáveis, inclusive, nos países mais pobres), a luta de classes – em sentido clássico – passou a sofrer a concorrência de outras formas de “assujeitamentos” para usar um jargão da moda. Em suma, a representação política da esquerda de inspiração marxista se viu às voltas com a concorrência de outros segmentos empenhados em expandir os limites da democracia e da igualdade mundo afora. Como lidar com isso?

Preliminarmente, é preciso reconhecer a legitimidade de mecanismos de formação de identidades – adquiridos em experiências que não se opõe, mas também não se esgotam na luta de classe – e que explicitam a presença de um sem-número de contradições insuscetíveis de recorte apenas no âmbito do poder político stricto sensu, entre os quais: o protesto das mulheres contra a opressão machista, dos grupos LGBTs em face da discriminação, dos povos originários pelo reconhecimento de sua herança cultural, ou ainda, das populações afrodescendentes no enfrentamento do racismo. Enfim, de uma infinidade de contornos cada vez mais presentes na teoria e prática dos coletivos da cultura e movimentos sociais. (Reconhecer a legitimidade das lutas desses setores, incorretamente tratados por “minorias”, não significa endossar a atitude de todas as suas frações, algumas delas comprometidas com a defesa de ideologias, no mínimo, discutíveis, a exemplo do diferencialismo cultural).

Sem data de certidão de nascimento propriamente dita, essas políticas de identidade adquiriram maior visibilidade, porém, a partir das revoltas estudantis de 1968. Com a impulsividade típica da juventude, os participantes daqueles protestos “reinventaram a roda”. Ou pelo menos, assim o pretenderam. Com base numa constelação teórica capaz de reunir de Marcuse a Focault, fizeram largo uso da descoberta de Lacan referente à presença de um sujeito cindido, imerso num complexo relacional situado para além da materialidade das relações econômicas. Um “corpo” integrado por malhas de desejo, redes de afeto e, em muitos sentidos, por aspirações à identidade. Em resumo, os jovens do período converteram a revolução num objeto estético. Se debatendo entre a produção da subjetividade e a demanda por institucionalização, a crítica promovida pela esquerda pós-1968 influenciou profundamente os acontecimentos das últimas décadas, principalmente no que diz respeito às relações entre a espécie humana e a natureza. O que não é pouco, convenhamos. Por conta das interrogações dirigidas por umas de suas grifes – o movimento ambientalista – caiu inteiramente em descrédito a concepção de progresso material fundada na exaustão de recursos não renováveis, direta ameaça ao futuro da vida no planeta.

Em registro menos luminoso, porém, várias das ramificações da esquerda identitária abandonaram o compromisso com uma plataforma anticapitalista. Especialmente após a derrota simbolizada pelo fim do bloco socialista, ao final da década de 1980. Nesse momento, de evidente derrota ideológica, não foram poucos os segmentos da política da identidade que migraram da esquerda para o centro, prestando vassalagem à economia de mercado e impulsionando – mundo afora – a expansão de organizações não governamentais (ONGs), ostensivamente financiadas por grandes corporações. A essa altura, o maio de 1968, com seu lema, a “imaginação no poder”, equivalia apenas a uma lembrança de sua melhor performance: o momento em que, unindo-se ao movimento sindical, a coalizão libertária mandou, virtualmente, pelos ares a IV República Francesa. Episódio concluído em derrota, mas grávido de significação e consequência, pela atualidade do exemplo oferecido.

Passando em retrospecto todo esse passado de lutas – composto de um mosaico de tendências em conflito – uma simples evidência se impõe à análise: pelo visto, a utopia das chamadas “minorias” glutina mais força cultural do que política e que, para provocar impacto sobre a esfera pública, precisa se unir em aliança (tensa e atritada, por sinal) com a representação das forças do trabalho. Sem isso, está aberto o espaço para a fragmentação de sua influência e a cooptação de suas propostas pelos partidos da ordem, inclusive os de corte neoliberal.

Hoje, possivelmente sob impulso da crise mundial deflagrada a partir de 2008, a juventude – como sempre – empenha sua influência nos movimentos de massa para trazer a esquerda identitária para mais perto da classe trabalhadora. Uma espécie de volta às origens. Em termos de literatura, a inspiração para essa retomada pode ser buscada em autores tão distintos quanto Toni Negri ou ainda Zlavoj Zizek, em sentido eclético. Porém, o marxismo participa da renovação da cultura insurgente por meio de nomes como James Petras, Angela Davis e David Harvey – entre outros. Essa conjugação entre prática e teoria explica, pelo menos em parte – uma vez que há outras condicionantes – o surgimento de agrupamentos com as características do Podemos, na Espanha ou o Bloco da Esquerda, em Portugal. Em menor proporção, também descreve a dinâmica de organizações como A Esquerda, na Alemanha e o Syriza, na Grécia.
Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX