21 de março de 2017

Republicanismo demais ou de menos?


Por Marcelo Barbosa

E prossegue, como era de se esperar, o ciclo de avaliações das causas do golpe judicial-parlamentar em curso. A maioria dessas reflexões aponta numa direção: o suposto caráter excessivamente amplo das alianças praticadas pelo governo do PT e de seus parceiros. Outras autocríticas, mais afeitas ao aspecto programático, ressaltam a falta de projeto estratégico das administrações petistas desde a posse de Lula, em 2003, crítica essa a qual me filio. Saindo da política (pelo menos em sentido imediato), também há reparos de natureza teórica surgindo. Um deles, a acusação o de que atitude do PT, no poder, seria “republicana” demais. Por essa ótica, Lula, e depois Dilma, teriam confiado em demasia no compromisso das elites com uma legalidade democrática a que essas mesmas classes dominantes não hesitaram em romper desde o momento da eleição de 2014.  Mas, será que as esquerdas à frente do governo – fica a pergunta – foram tão republicanas assim?

Responder a essa questão, de forma categórica, demanda um conhecimento especializado o qual, francamente, não disponho. Só me aventuro por esse debate por uma razão: a sua natureza não exclusivamente acadêmica. Isto é, atribuir alguma significação a termos como “legalidade” ou ainda “republicanismo” responde a necessidades práticas, derivadas do enfrentamento cotidiano ditado pela política.

Sendo assim, não cabe nesse texto a promoção de uma exegese dos trabalhos de autores como Pettit, Skinner ou ainda Habermas, nem fornecer uma definição pronta do que se possa entender por republicanismo ou neorrepublicanismo*. Cumpre apenas constatar a irrupção, nas últimas décadas, de uma junção de diferentes abordagens, presentes sobretudo nas áreas dos estudos jurídicos e da filosofia política, tendo por pressuposto a recuperação da importância da expressão latina res publica (coisa pública), contraposta à res privata (a esfera privada e familiar) e, por fio condutor, a prevalência do interesse coletivo sobre o particular. Repartido em infinidade de correntes, o republicanismo se une, no entanto, na defesa da ampliação dos espaços de soberania popular, desde que conjugada à manutenção dos procedimentos formais de alternância de poder e respeito às minorias, garantias sem as quais a forma de governo denominada república sofre o risco de derivar para a autocracia e o despotismo.

É possível depreender, o republicanismo contemporâneo encontrou ressonância na qualidade de resposta à crise que as duas maiores tendências da esquerda mundial – o socialismo e a socialdemocracia – experimentaram nos últimos quarenta anos. Não à toa, a corrente atingiu o ponto culminante de sua influência por ocasião do marco simbólico da queda do Muro de Berlim. Coincidentemente, o marxismo, nessa mesma quadra, também atravessava uma forte crise de descrédito, em todas as suas ramificações, por sua (alegada) incapacidade de conciliar a busca da igualdade com a liberdade dos indivíduos. Em tais condições, o atrativo republicanista era quase irresistível: tratava-se da única manifestação de pensamento social com capacidade de travar a disputa ideológica com o liberalismo em igualdade condições. Sem maior divulgação nos círculos do sindicalismo e dos movimentos operário tradicional, a retórica republicana de acesso a direitos fundamentais ecoou, no entanto, fortemente nos chamados movimentos sociais, para cobrar: acesso à moradia, à terra, à saúde, informação, à políticas inclusivas como bolsa família**.

Acredito que possa invocar a minha experiência pessoal – durante os anos noventa do século XX – para reconstituir a influência das versões republicanas, sobretudo a de Habermas, sob a minha área de atuação profissional, o direito. Para nós, operadores jurídicos (pelo menos aqueles comprometidos com a democracia e o socialismo) era como se uma nova aurora se anunciasse no terreno das ciências da sociedade. E que o campo teórico capaz de reunir de Marx a Gramsci encontrasse atualização nas (então) recentes contribuições reunidas em obras como Para a reconstrução do Materialismo Histórico, possibilitando, assim, o diálogo entre as tradições revolucionárias de 1917 e de 1789. A pedra de toque desse relacionamento? A categoria designada “bem comum”. Um conceito que, muito condizente com nossas expectativas (mas também com nossas ilusões), permitia enunciar conteúdos muito distintos, sob o manto de uma indeterminação convertida em virtude.

Vítima do próprio sucesso, o republicanismo sofreu a má fortuna de todas as expressões teóricas que deixam o mundo da academia para reinar no senso comum da mídia, dos programas partidários e das conversas de botequim: deslocou-se seu sentido originário. A prevalência do interesse coletivo sobre os interesses privados transmutou-se – atendendo ao imaginário das camadas médias brasileiras – em luta contra o patrimonialismo das velhas elites e esforço de erradicação do fenômeno da corrupção administrativa (tudo como se a corrupção não fosse algo de inato ao capitalismo). Sensível a essa agenda, os governos da presidenta Dilma, sobrelevaram a moralidade sobre todos os demais princípios dentro administração pública. Um equívoco, sem dúvida. Não é preciso ser republicano para entender que, numa democracia representativa, o respeito ao império da lei assume prevalência e subordina todos os demais princípios.

Resumo da ópera: o nosso governo e seus aliados permitiram, por amor à transparência e a “boa governança”, a partir de 2013, a germinação e o desenvolvimento de um foco conspirativo dentro do aparelho de Estado, intitulado Operação Lava Jato. Republicanismo em excesso? Tudo a leva a pensar em contrário. Uma democracia digna desse nome deve, primeiramente, assegurar a todos (inclusive a empreiteiros supostamente corruptos) o acesso a garantias individuais consagradas desde o iluminismo, tais como o habeas corpus, a presunção de inocência, o amplo direito de defesa ou princípio do contraditório. Caso contrário, aos poucos, deixa de ser uma democracia. Transforma-se, paulatinamente, em um Estado de Exceção, no qual se pode cometer toda a sorte de arbitrariedades, inclusive remover do cargo uma governante sem crime de responsabilidade.

* Para uma panorâmica do republicanismo (ou neorrepublicanismo), aconselho o contato com textos de um autor que, curiosamente, não se define como estritamente republicanista: BOBBIO, Noberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.

** No Brasil, o momento mais luminoso dessa voga republicanista, sem dúvida, aconteceu durante o período da luta contra as privatizações de empresas públicas sob o consulado FHC. Momento em que esse “significante vazio” – para usar o jargão lacaniano – chamado bem comum, serviu de intercessão entre as aspirações de atores sociais muito distintos, empurrando o movimento sindical sadiamente de sua pauta econômica para uma parceria com esse mesmo Ministério Público Federal – hoje tão macartista e apequenado – na luta pela soberania econômica do povo brasileiro. Sem essa coalizão, o processo de privatizações daquela era teria sido imensamente mais lesivo, incluindo Petrobrás e o Banco do Brasil na cesta de patrimônios do povo brasileiro oferecidos na bacia das almas ao capital financeiro internacional. Vibrando na memória dos lutadores sociais, essa página de luta inscreveu o republicanismo, definitivamente, no rol das contribuições teóricas ao arsenal de guerra do pensamento social progressista.

Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX