Por Marcelo Barbosa
Termos equiparados no senso
comum contemporâneo, conservadorismo e reacionarismo apresentam, no entanto,
trajetórias distintas na história das ideias. A ideologia conservadora, em
especial, é detentora de um debate interno muito rico.
Dentre muitas dinâmicas,
diversos “tipos ideais”, abrangidos pelo termo conservadorismo –
possivelmente o mais compatível com as expectativas das elites – seja o do
exercício do poder, em particular o de natureza política, como “cimento” da
sociedade, instância de controle sem o qual a anarquia se instala, corroendo
toda a estrutura da “nação”. Em busca da evolutio
dentro da ordem, o conservador pretende a manutenção das regras do sistema
político. Isso acima de quaisquer outras considerações. Um método no qual a
mudança não se encontra, a priori,
excluída, até porque – seguindo a receita aviada pelo grande teórico do
conservadorismo no século XVIII, Edmund Burke – “um Estado onde não se pode
mudar nada não tem meios de se conservar”. Curiosamente, a frase do político
irlandês poderia ter sido pronunciada noutro contexto geográfico, o da Itália
do Risorgimento magnificamente
recriada por Visconti, em O Leopardo
(a partir de um romance de Lampedusa). No filme, o personagem principal, o
Príncipe de Salina, profere a célebre sentença: “é preciso que as coisas mudem
para que permaneçam como estão”.
Conferindo estabilidade – quando
não imobilidade – à formação social brasileira nos últimos duzentos anos, a
prática e o discurso conservadores capacitaram as elites do país a lidar com os
conflitos políticos por meio do esvaziamento do potencial de ruptura das
crises, pela indução de soluções de compromisso. Os exemplos falam por si: da
Independência à Revolução de 1930, passando pela Abolição da Escravatura, todas
as mudanças aconteceram por assim dizer, pelo alto. De mesma maneira, os
processos de industrialização e urbanização acelerada das últimas décadas do
século XX tornaram-se realidade sem alterações dos perfis de distribuição de renda.
Mesmo a eleição e o prosseguimento de governos encabeçados por um partido
manifestamente de esquerda só foram possíveis por meio de concessões – e aqui
não se discute se justificadas ou não – ajustadas na chamada Carta aos brasileiros. Pelo que se pode
pensar, nada obstante as atualizações, o eco das ideias articuladas por
Varnhagen e outros precursores, continua ouvido no Brasil de hoje.
Comumente associado à esfera da
política, o conservadorismo fornece, no entanto, no plano da cultura, a sua
melhor chave de compreensão. Ou seja, aparentemente simples, a execução da
proposta conservadora demanda o manejo de uma sofisticada rede de produção
simbólica, organismo responsável por gerar e reproduzir valores culturais de
afirmação do estabelecido, em níveis que se articulam o Estado, a igreja, a
escola, a economia, as artes, os esportes, entre outros nexos. Um procedimento
no qual não basta produzir o veto às concepções de mundo ditas progressistas,
ou ainda o repúdio às expectativas de avanço da sociedade, como na cartilha do
reacionarismo. A alternativa metodológica de pensadores como Varnhagen e seus
seguidores supõe uma outra atitude: a da arbitragem
entre os níveis de mudança e de continuidade a ser administrados nos variados
compartimentos da vida pública e privada brasileira, sempre em benefício da
manutenção do status quo em vigência
a cada momento. Pouco marcado pela busca por coerência, esse tipo de pensamento
venceu as barreiras do tempo, especialmente por sua conformidade ante às
expectativas dos segmentos situados no topo da pirâmide social.
Frequentemente confundidos no
Brasil, reacionarismo e conservadorismo têm em comum apenas a oposição à idéia do progresso social. De resto,
exibem programa político e base social inteiramente distintos. Em comportamento
algo diverso do restante da América Latina, o liberalismo brasileiro tende à
reação. Da velha UDN à atual coalizão PSDB-DEM, sempre expressou – com a
nitidez possível dentro de um sistema eleitoral hostil ao alinhamento
ideológico – os interesses do capital associado (industrial e bancário), da
grande empresa rural e das camadas médias urbanas. Com essas características
genéticas, os liberais brasileiros, pouca dificuldade encontraram para operar a
transição do alinhamento ao “Ocidente Cristão” – durante o período da
guerra-fria – ao apoio ao Consenso de Washington.
Já o conservadorismo, nos coloca
na presença de um estamento patrimonialista, em boa medida composto por elites
em decadência, cujo poderio não pode se reproduzir na presença do Estado Mínimo
preconizado pelos neoliberais. Para esses estratos, fortemente representados no
PMDB, que alinham desde o latifúndio clássico (pré-agronegócio) até os
representantes de aparatos clientelistas urbanos, a máquina pública não existe
para servir de mera repassadora de interesses privados das parcelas mais
dinâmicas do capitalismo. O Estado configura o próprio negócio. A raiz da dominação desses setores radica no controle dos
mecanismos formais da democracia representativa cuja sinergia mais perfeita –
mas nem de longe a única – transparece
no relacionamento entre a produção, em série, das chamadas emendas de
orçamento, no Congresso, e as expectativas das grandes empreiteiras. Grupo
social em declínio, a velha elite precisa se fazer representar nos governos.
Sempre. Entrando e saindo de quaisquer governos.
Diante da polarização direita x
esquerda em curso na sociedade brasileira, o centro conservador ressurge,
conspira e prepara – lançando mão do golpe institucional do impeachment – o
retorno à ordem política e social anterior ao advento do PT no poder.
Será que, mais uma vez, caberá
aos conservadores exercer a sua secular tutela sobre os conflitos políticos no
Brasil?
Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ e diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX
Burt
Lancaster, o príncipe de Salina na obra-prima de Visconti O Leopardo, baseado no romance de Tomasi
di Lampedusa