Por Marcelo Barbosa
Numa
democracia representativa, assentada sobre um sistema de tripartição de
poderes, cabe ao judiciário exercer uma função estabilizadora do sistema político.
Em importante medida porque seus membros desfrutam de vitaliciedade nos cargos.
Isto é, não estão sujeitos à ação das maiorias de ocasião que, por vezes,
empolgam o executivo e o legislativo. Nessa modelagem, a que o Brasil aderiu
desde antes do advento da Constituição de 1988, os agentes públicos do Judiciário
guardam fidelidade ao Estado e não aos governos, tornando a instituição menos
permeável à pressão econômica, política e social. Ou pelo menos em teoria,
deveria ser assim. Mas, não vem sendo. Com o recrudescimento da luta política –
sinalizadora do conflito de classes – as disputas em curso na sociedade, cada
vez mais, se veem transferidas para o interior do aparelho de Estado,
atingindo, em cheio, o judiciário e os corpos públicos oriundos de outros
poderes, mas com os quais se relaciona, entre os quais a Polícia Federal e o MP.
Por
óbvio, não parece possível – e nem recomendável – “blindar” os tribunais de
tudo aquilo que acontece no mundo à sua volta. Magistrados também têm direito
de opinião. Sofrem influência das ideologias de centro, esquerda e direita em
estoque na sociedade. É inevitável, inclusive, que acabem expressando essas
preferências em suas sentenças e despachos. Só não podem (conforme ocorre, ao
momento), ser recrutados pela política partidária, pois isso corrói os
alicerces da República.
Infelizmente,
por motivos diametralmente distintos, o comportamento perante o judiciário das
duas parcelas mais influentes da esquerda e da direita, no país, agrava esses
fenômenos de partidarização.
Expressão
presumível dos interesses de grande capital, exibindo nítida filiação à
ideologia neoliberal, o PSDB trata, em sua matriz doutrinária, o judiciário
como mais um episódio na rotina de um Estado dito “inchado” e ”ineficiente”. Um
leviatã consumidor de excessivas verbas públicas. Cuja principal esfera de
atividade – a prestação da justiça – deveria ser resolvida por mecanismos de
intermediação (e conciliação) de demandas, sempre preservada a autonomia de
vontade das partes envolvidas em litígios. Nessa chave de compreensão, era
melhor que o judiciário ou não existisse – utopia inalcançável até na ótica dos
discípulos de Friedman – ou pelo menos, ocupasse um papel bem menor na vida
social.
Claro,
essa descrição do pensamento tucano em relação ao judiciário – exposta aqui em
tom de caricatura – não encontra abrigo na realidade. Para fins práticos, os
neoliberais buscam cooptar a justiça*. A indicação dos nomes dos ministros a
compor os quadros do STF representa o evento culminante dessas práticas. Mas, não
o único. Pois, desde os seus níveis elementares, a magistratura, refletindo a
origem de classe de seus agentes – e com as naturais dissidências progressistas
ou conservadoras – vai sendo adestrada para viabilizar um impasse: a reprodução
de um regime de liberdades políticas sem correspondência no plano da luta pela
igualdade social. Isto é, progressistas (na média), em matéria de costumes,
direito de minorias, discriminalização das drogas leves, entre outros tópicos,
os juízes costumam a ser conservadores na preservação dos direitos de
propriedade (no que caminham a contrário sentido da Constituição de 1988, carta
comprometida com a noção de caráter social do direito de propriedade.)
Esses
mecanismos de formação de um pensamento hegemônico nos quadros do judiciário –
marcados, repita-se, pelo uso de ferramentas de cooptação – serviu sem abalos,
até a irrupção do esgarçamento social abrigado nos protestos de 2013. Desde então,
ao que tudo indica, vai se verificando – e as práticas do juiz Moro o comprovam
– um enfraquecimento do compromisso da magistratura com preservação dos direitos
e garantias individuais e coletivas. As informações veiculadas nas mídias,
tanto nas redes sociais quanto nas cadeias monopolistas de informação, atestam
o declínio da observância aos princípios da inocência presumida, do acesso ao
habeas corpus, da obediência à competência territorial, vistos na qualidade de
estorvos à prestação da justiça e subterfúgios para beneficiar “a impunidade”
(sic). Na narrativa da linha dura judiciária, em face do crescimento endêmico
da corrupção, só resta apelar à Providência e confiar no envio à Terra de uma
personalidade ou de várias personalidades justiceiras encarregadas de “passar a
limpo o país” (sic). Um enredo gasto e responsável pela entrada na cena da vida
pública brasileira de personagens no figurino de um Collor de Mello ou de um
Janio Quadros. E que agora serve de senha para o exibicionismo autoritário de
parcelas do Ministério Público.
Por
sua vez, a esquerda, principalmente aquela ocupante do poder (ou seja, o
Partido dos Trabalhadores e seus aliados), mesmo após a sua condução ao governo
Federal, jamais se deu ao trabalho de desmontar os mecanismos de cooptação.
Pelo contrário, intentou colocar esse processo a seu serviço. Não agiu assim
por oportunismo. Em seu corpo teórico de fundação, o PT, coerente com certa
vulgarização do marxismo, concebia o judiciário e o direito dentro do estatuto
de superestrutura da ditadura de classe burguesa. Um espaço da dominação
estamental dado, de antemão, por perdido, em vista do conservadorismo congênito
das instituições jurídicas. Caberia buscar o realismo, portanto. Reduzir os
interesses do executivo à tomada de decisões que provocassem impacto direto no
governo, sobretudo as de natureza orçamentária, mas sem nunca adotar uma agenda
de objetivos de longo prazo para o judiciário.
Mesmo
quando resolveram fixar objetivos menos imediatos em relação à administração da
justiça, as iniciativas dos governos do PT objetivaram apenas promover as
expectativas da população em relação aos tribunais: ou seja, criação de
mecanismos de controle externo do judiciário, diminuição da morosidade nos
processo ou democratização do acesso à prestação jurisdicional, para mencionar
as ações mais rumorosas. O aspecto da formação valores capazes de orientar a prática
dos magistrados no rumo do aprofundamento da democracia e da igualdade – temas
que servem de coluna vertebral da Constituição de 1988 – permaneceu intocado. O
vácuo da necessária politização do judiciário foi ocupado pela propaganda
partidária.
A
resultante de tais processos? O risco do poder judiciário continuar rumando – à
marcha batida – para assumir, no presente e no futuro, o papel desempenhado
pelas Forças Armadas no passado: o de veículo de insatisfação permanente das
camadas médias, operador da desestabilização da democracia.
*
O método da cooptação remete a uma herança das velhas elites territoriais,
ainda ativas porém em franca decadência, presentes em boa parte, na estrutura
do PMDB.