Sem
democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia
Por Hamilton
Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino
Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais
marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos em seu apartamento
no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma conversa sobre os caminhos e
descaminhos da esquerda brasileira, sua decepção com o governo Lula e as
possibilidades de superação do capitalismo.
Estudioso de Antonio Gramsci, Coutinho
defende a atualidade de Marx e reafirma o que disse em seu polêmico artigo
“Democracia como valor universal”, publicado há 30 anos: “Sem democracia não há
socialismo, e sem socialismo não há democracia”.
CNC faleceu na madrugada do dia 20/9/2012,
vítima de câncer. Essa entrevista foi publicada na edição 153 da revista, que
circulou a partir de dezembro de 2009 — confira as edições anteriores na loja Caros Amigos
Hamilton
Octávio de Souza — Queremos saber da
sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira..
Caros
Nelson Coutinho — Nasci na Bahia, em uma cidade do interior chamada
Itabuna, mas fui para Salvador muito pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me
formei em Salvador, e as opções que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943,
glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade
Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que
a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado
e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não
era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me
tornei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca.
Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha,
disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu
devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois ano porque
era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer
política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tornando
intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela
época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque
tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de
direito penal, direito civil, aí eu vi que não era a minha e fui fazer
filosofia.
Renato
Pompeu — Mas quais eram as suas
referências intelectuais?
CNC — Em primeiro lugar, Marx,
evidentemente, mas também foram muito fortes na minha formação intelectual o
filósofo húngaro George Lukács e Gramsci. Eu tenho a vaidade de ter sido um dos
primeiros a citar Gramsci no Brasil, porque aos 18 anos eu publiquei um artigo
sobre ele na revista da faculdade de Direito. Aí eu vim para o Rio e fui
trabalhar no Tribunal de Contas. Me apresentei ao João Vieira Filho para
trabalhar e ele me falou: “meu filho, vá pra casa e o que você precisar de mim
me telefone”. Eu fiquei dois ou três anos aqui sem trabalhar, mas a situação
ficou inviável. Pedi demissão e fui, durante um bom tempo, tradutor. Eu ganhava
a vida como tradutor, traduzi cerca de 80 ou 90 livros. Em 76, eu fui para a
Europa. Passei 3 anos fora, não fui preso, mas senti que ia ser, foi pouco
depois da morte do Vlado. Então morei na Europa por três anos, onde acho que
aprendi muita política. Morei na Itália na época do florescimento do
eurocomunismo, que me marcou muito. O primeiro texto que publiquei é exatamente
este artigo da “Democracia como valor universal” que causou, sem modéstia, um
certo auê na esquerda brasileira na época. Até hoje há citações de que é um
texto reformista, revisionista. Enfim, voltei do exílio e entrei na
universidade, na UFRJ, onde eu estou há quase 28 anos. Passei por três partidos
políticos na vida. Entrei no PCB, como disse antes, aos 17 anos, onde fiquei
até 1982, quando me dei conta que era uma forma política que tinha se esgotado.
Nesse momento, surge evidentemente uma coisa que o PC não esperava e não
queria, que é um partido realmente operário, no sentido de ter uma base operária.
O mal-estar do PCB contra o PT no primeiro momento foi enorme. Eu saí do PCB,
mas não entrei logo no PT. Só entrei no PT no final da década de 80, entrei
junto com o [Milton] Temer e o Leandro Konder. Fizemos uma longa discussão para
ver se entrávamos ou não, e ficamos no PT até o governo Lula, quando nos demos
conta que o PT não era mais o PT. Saí e fui um dos fundadores do PSOL, que
ainda é um partido em formação. Ele surge num momento bem diferente do momento
de formação do PT, de ascensão do movimento social articulado com a ascensão do
movimento operário. E o PSOL surge exatamente em um momento de refluxo. Nessa
medida, ele é ainda um partido pequeno, cheio de correntes. Eu sou
independente, não tenho corrente. Podemos dizer o seguinte: eu tinha um
casamento monogâmico com o PCB, com o PT já me permitia traições e no PSOL é
uma amizade colorida.
Tatiana
Merlino — Em uma entrevista recente
o senhor falou sobre o avanço e o triunfo da pequena política sobre a grande
política dentro do governo Lula. Você pode falar um pouco sobre isso?
CNC — Gramsci faz uma distinção entre o
que chama de grande política e pequena política. A grande política toma em
questão as estruturas sociais, ou para modificá-las, ou para conservá-las. A
pequena política de Gramsci é a política da intriga, do corredor, a intriga
parlamentar, não coloca em discussão as grandes questões. Durante algum tempo,
o Brasil passou por uma fase de grande política. Se a gente lembrar, por
exemplo, a campanha presidencial de 89, sobretudo o segundo turno, tinha duas
alternativas claras de sociedade. Não sei se, caso o PT ganhasse, ia cumpri-la,
mas, do ponto de vista do discurso, tinha uma alternativa democrático-popular e
uma alternativa claramente neoliberal. Até certo momento, no Brasil, nós
tivemos uma disputa que Gramsci chamaria de grande política. A partir, porém,
sobretudo, da vitória eleitoral de Lula, eu acho que a redução da arena
política acaba na pequena política, ou seja, que no fundo não põe em discussão
nada estrutural. Eu diria que é a política tipo americana. Obviamente o Obama
não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de que o Obama vai mudar as estruturas
capitalistas dos Estados Unidos, ou propor uma alternativa global de sociedade.
Então, o que está acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando
Serra não vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode
fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido
a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política brasileira
“americanalhou”, virou essa coisa... Então, neste sentido eu entrei no PSOL até
com essa ideia de criar uma proposta realmente alternativa. Infelizmente o PSOL
não tem força suficiente para fazer essa proposta chegar ao grande público, mas
é uma tentativa modesta de ir contra a pequena política.
Renato
Pompeu — Você não acha que esse
americanalhamento aconteceu na própria pátria do Gramsci?
CNC — Ah, sem dúvida. A predominância
da pequena política é uma tendência mundial. Me lembro que logo depois da abertura
eu escrevi uns dois ou três artigos em que dizia que o Brasil se tornou uma
sociedade complexa. O Gramsci a chamaria de ocidental, que é uma sociedade
civil desenvolvida, forte e tal. Mas há dois modelos de sociedade ocidental -
um modelo que eu chamava de americano, que é este onde há sindicalismo, mas o
sindicalismo não se põe nas estruturas, há um bipartidarismo, mas os partidos
são muito parecidos, e o que eu chamava de modelo europeu, onde há disputa de
hegemonia. Ou seja, se alguém votava no partido comunista na Itália, sabia que
estava votando em uma proposta de outra ordem social. Se alguém votava no
Labour Party na Inglaterra durante um bom tempo, pelo menos o programa deles
era socialista, de socialização dos meios de produção. E quem votava no partido
conservador queria conservar a ordem. O Brasil tinha como alternativa escolher
um ou outro modelo. Por exemplo, havia partidos que são do tipo americano, como
o PMDB, mas havia partidos que são do tipo europeu, como o PT. Havia um
sindicalismo de resultado e um sindicalismo combativo (CUT, por exemplo), mas
tudo isso era naquela época. Depois a hegemonia neoliberal, em grande parte,
americanalhou a política mundial. A Europa hoje é exatamente isso, são partidos
que diferem muito pouco entre si. Há um “americanalhamento”. É um fenômeno
universal e é uma prova da hegemonia forte do neoliberalismo.
Tatiana
Merlino — Então o avanço da pequena
sobre a grande política está sendo mundial?
CNC — É um fenômeno mundial, não é um
fenômeno brasileiro. Mas veja só, começam a surgir na América Latina formas que
tentam romper com este modelo da pequena política. Estou falando claramente de
Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, ainda que eu não seja um chavista, até
porque eu acho que o modelo que o Chávez tenta aplicar na Venezuela não é
válido para o Brasil, que é uma sociedade mais complexa, mais articulada. Mas
certamente é uma proposta que rompe com a pequena política. Quando o Chávez
fala em socialismo, ele recoloca na ordem do dia, na agenda política, uma questão
de estrutura.
Tatiana
Merlino — Então é um socialismo
novo, do século 21.
CNC — Que socialismo é esse?
Eu não
sei, aí tem que perguntar para o Chávez. Olha, eu não gosto dessa expressão
“socialismo do século 21”, eu diria “socialismo no século 21”.
Renato
Pompeu — E como seria o socialismo
no século 21?
CNC — Socialismo não é um ideal ético
ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de
um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido
eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o
capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista,
como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do
capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto
Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de
crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em
Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações,
que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir
uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um
sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha,
inclusive, que ela se tornaria maioria da sociedade. Acho que isso não
aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as
profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a
criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária
tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas
hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa
gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de
montagem... Será que este cara que trabalha no computador em casa se sente
solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um
grande desafio. Como congregar todos estes segmentos do mundo do trabalho
permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe
e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?
Renato
Pompeu — Aí tem o problema dos
excluídos...
CNC — Eu tenho sempre dito que as
condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem
atenção, o Marx, no livro 3 do “Capital”, diz o seguinte: O comunismo implica
na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa
para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino
onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora.
Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro “A Ideologia Alemã” que o
socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz
crítica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz
que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo
desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma
possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do
desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego para todos os
outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção
capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o
trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então,
eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto,
se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens,
são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas
são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito.
Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta
a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é
um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar. Um desafio também
fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em
grande parte, o mal chamado “socialismo real” fracassou porque não deu uma
resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só
socialização dos meios de produção – nos países do socialismo real, na verdade,
foi estatização – mas é também socialização do poder político. E nós sabemos
que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma
burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver,
aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não
realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar
também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, “Democracia como
valor universal”, não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de
repensar o vínculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo
contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão “marxista-leninista”, o
pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que
este foi o limite central da renovação do partido.
Marcelo
Salles — E nesse “Democracia como
valor universal”, você disse recentemente que defende uma coisa que não foi
muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da
democracia...
CNC — Uma alteração que eu faria no
velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas
democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela
não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados
contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização
da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do
poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político,
ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade
capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por
mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela
condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da
democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo.
Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há
democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase.
Hamilton
Octávio de Souza — Nós saímos de um
período de 21 anos de ditadura militar, essa chamada democracia que nós
vivemos, qual é o limite? O que impende o avanço mesmo que não se construa uma
nova sociedade?
CNC — Eu acho que temos uma tendência,
que me parece equivocada, de tratar os 21 anos da ditadura como se não houvesse
diferenças de etapas. Eu acho – e quem viveu lembra – que, de 64 ao AI-5, era
ditadura, era indiscutível, mas ainda havia uma série de possibilidades de
luta. Do AI-5 até o final do governo Geisel, foi um período abertamente
ditatorial. No governo Figueiredo, há um processo de abertura, um processo de
democratização que vai muito além do projeto de abertura da ditadura. Tem um
momento que os intelectuais mais orgânicos da ditadura, como o Golbery, por
exemplo, percebem que “ou abre ou pipoca”. O projeto de abertura foi então
atravessado pelo que eu chamo de processo de abertura da sociedade real. Eu não
concordo com o Florestan Fernandes quando ele chama a transição de
conservadora. Eu acho que ocorreu ali a interferência de dois processos: um
pelo alto, porque é tradicional na história brasileira as transformações serem
feitas pelo alto, o que resultou na eleição de Tancredo. Mas também houve a
pressão de baixo. A luta pelas “Diretas” foi uma coisa fundamental, também
condicionou o que veio depois. Esta contradição se expressa muito claramente na
Constituição de 88, que tem partes extremamente avançadas. Todo o capítulo
social é extremamente avançado, embora a ordem econômica tenha sido mais ou
menos mantida. Mas a Constituição é tanto uma contradição que o que nós vimos
foi a ação dos políticos neoliberais, dos governos neoliberais de tentar
mudá-la, de extirpar dela aquelas conquistas que nós podemos chamar de
democráticas. Eu acho que o Brasil hoje é uma sociedade liberal-democrática no
sentido de que tem instituições, voto, partidos e tal. Mas, evidentemente, é
uma democracia limitada, sobretudo no sentido substantivo. A desigualdade
permanece.
Hamilton
Octávio de Souza — Mas hoje o que
está mais estrangulado para o avanço na democracia ainda no marco de uma
sociedade capitalista?
CNC — Eu acho que a ditadura reprimiu a
esquerda, nos torturou, assassinou muitos de nós, nos obrigou ao exílio, mas
não nos desmoralizou. Eu acho que a chegada do Lula ao governo foi muito nociva
para a esquerda. Ninguém esperava que o governo Lula fosse empreender por
decreto o socialismo, mas pelo menos um reformismo forte, né? Eu acho que a
decepção que isso provocou, mais toda a história do mensalão e tal, é um dos
fatores que limitam o processo de aprofundamento da democracia no Brasil. Entre
outras coisas porque o governo Lula, que é um governo de centro, cooptou os
movimentos sociais. Temos a honrosa exceção do MST que não é assim tão exceção
porque eles são obrigados... tem cesta básica nos assentamentos e tal, eles são
obrigados também a fazer algumas concessões, mas a CUT... Qual a diferença da
CUT e da Força Sindical? Eu acho que essa transformação da política brasileira
em pequena política, que se materializou com o governo Lula, que não é
diferente do governo Fernando Henrique, foi o fator que bloqueou o avanço
democrático. Até 2002, havia um acúmulo de forças da sociedade brasileira que
apontava para o aprofundamento da democratização, e o sujeito deste processo
era o PT, o movimento social. Na medida em que isso se frustrou, eu acho que
houve um bloqueio no avanço democrático na época. O neoliberalismo enraizou-se
muito mais fortemente na Argentina do que no Brasil porque aqui havia uma
resistência do PT e dos movimentos sociais. Com a chegada ao governo, essa
resistência desapareceu. Então, de certo modo, é mais fácil a classe dominante
hoje fazer passar sua política em um governo petista do que em um governo onde
o PT era oposição.
Tatiana
Merlino — Então a conjuntura seria
um pouco menos adversa se estivesse o José Serra no poder e o PT como oposição?
CNC — Eu não gostaria de dizer isso,
mas eu acho que sim. Mas isso coloca uma questão: e se demorasse mais quatro
anos para o PT chegar ao governo, ia modificar estruturalmente o que aconteceu
com o PT? Até um certo momento, é clara no partido uma concepção socialista da
política. A partir de um certo momento, porém, antes de Lula ir ao governo,
o PT abandonou posturas mais combativas. Ele fez isso para chegar ao
governo. Mas se demorasse mais quatro anos, ou oito anos, não aconteceria o
mesmo? Não sei. Não quero ser pessimista também, não era fatal o que aconteceu
com o PT.
Renato
Pompeu — Você é professor de qual
disciplina?
CNC — De teoria política.
Renato
Pompeu — Você é um cientista
político ou um filósofo da política?
CNC — Não, não. Filósofo tudo bem, mas
cientista político não. Porque ciência política para mim é aquela coisa que os
americanos fazem, ou seja, pesquisa de opinião, sistema partidário, a ciência
política é a teoria da pequena política. Eu sou professor da escola de Serviço
Social.
Hamilton
Octávio de Souza — Que projeto que
você identifica hoje no panorama brasileiro: a burguesia nacional tem um
projeto? As correntes de esquerda têm um projeto? Existe um projeto de nação
hoje?
CNC — Isso é um conceito interessante,
porque este é um conceito criado em grande parte pela Internacional Comunista e
pelo PCB, de que haveria uma burguesia nacional oposta ao imperialismo. Eu me
lembro quando eu entrei no partido, eu era meio esquerdista e vivia perguntando
ao secretário-geral do partido na Bahia: Quem são os membros da burguesia
nacional? E um dia ele me respondeu: “José Ermírio de Moraes e Fernando
Gasparian”. Olha, duas pessoas não fazem uma classe. Do ponto de vista nosso,
da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o
socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o
socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao
capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo.
Na maioria dos casos, estes partidos defendem a permanência do Estado do
bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma
estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a
formulação clara de um projeto socialista. Do ponto de vista das classes
dominantes, eu acho que eles têm um projeto que estava claro até o momento da
crise do neoliberalismo. Foi o que marcou o governo Collor e o governo Fernando
Henrique e o que está marcando também o governo Lula, com variações.
Evidentemente, há diferenças, embora a meu ver, não estruturais. Esse é o
projeto da burguesia. Com a crise, eu acho que algumas coisas foram alteradas,
então, uma certa dose de keynesianismo se tornou inevitável, mas sempre em
favor do capital e nunca em favor da classe trabalhadora. Tenho um amigo que
diz. “Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital”. No fundo, é
essa a proposta do neoliberalismo: desconstrução de direitos, concessão total
de todas as relações sociais ao mercado, subordinação do público ao privado, ao
capital internacional. Não há burguesia anti-imperialista no Brasil,
definitivamente. Pode haver um burguês que briga com o seu concorrente e o seu
concorrente é um estrangeiro, mas nem assim ele vai ser anti-imperialista.
Hamilton
Octávio de Souza — Você vê alguma
alteração a curto prazo?
CNC — O que poderia mudar isso seria um
fortalecimento dos movimentos sociais, da sociedade civil organizada sob a
hegemonia da esquerda. E pressionar para que reformas fossem feitas e se
retomasse uma política econômica mais voltada para as classes populares. Tem um
mote de Gramsci que eu acho muito válido, que é: “pessimismo da inteligência e
otimismo da vontade”. A esquerda não pode ser otimista numa análise do que está
acontecendo no mundo porque a esquerda tem perdido sucessivas batalhas. Então
ser otimista frente a um quadro desses é difícil. Quanto mais nós somos
pessimistas, mais otimismo da vontade temos de ter, mais a gente deve ter
clareza que só atuando, só dedicando todo o nosso empenho à mudança disso é que
essa coisa pode ser mudada. Então, a esperança de mudança seguramente há, há
potencialidades escondidas na atual sociedade que permitem ver e pensar a
superação do capitalismo. O capital não pode perdurar. A alternativa ao
socialismo, como dizia a Rosa Luxemburgo, é a barbárie. Se o capitalismo
continuar, teremos cada vez mais uma barbarização da sociedade que nós já
estamos assistindo.
Hamilton
Octávio de Souza — Por conta do
neoliberalismo, tivemos um aumento do desemprego estrutural, a informalidade do
trabalho, o desrespeito à legislação trabalhista, estamos numa condição de
perdas de conquistas, direitos. Como é que se explica a fraqueza do movimento
social diante disso?
CNC — A certeza que nós temos de que o
capitalismo não vai resolver os problemas nem do mundo nem do Brasil nos faz
acreditar que, primeiro, a história não acabou, e, portanto, ela está se
movendo no sentido de contestar a independência barbarizante do capital. Onde
eu vejo focos, no Brasil de hoje, é no MST. Uma coisa que funciona muito bem no
MST é a preocupação deles com a formação dos quadros. Eu fui de um partido, o
PCB, que tinha curso, mas as pessoas iam para Moscou, faziam a escola do partido.
O PT nunca se preocupou com formação de quadros, não tinham escolas, e o MST
tem. Eu acho que o MST tem uma ambiguidade de fundo que é complicada. Ele é um
movimento social e, como todo movimento social, ele é particularista, defende o
interesse dos trabalhadores que querem terra. Essa não pode ser uma demanda
generalizada da sociedade. Eu não quero um pequeno pedaço de terra, nem você. O
partido político é quem universaliza as demandas, formula uma proposta de
sociedade que engloba as demandas dos camponeses, proletários, das mulheres...
O MST tem uma ambiguidade porque ele é um movimento que frequentemente atua
como partido. Eu acho que isso às vezes limita a ação do MST.
Marcelo
Salles — O termo “Ditadura do
Proletariado” que vez ou outra algum liberal usa...
CNC — Na época de Marx, ditadura não
tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto
do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social,
o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados
durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma
não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito
que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é
uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o
parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato.
Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas
quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do
proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o
Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era
Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder
autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma
Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada.
Marcelo
Salles — Estão sempre dizendo que
não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito
forte, e teria o partido único...
CNC — Em primeiro lugar, não é
necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque,
poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo
era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário
de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário
que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo – marxista, comunista, que
apoiou a revolução bolchevique – dizia o seguinte: liberdade de pensamento é a
liberdade de quem pensa diferente de nós. Então, não há na tradição marxista a
ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de
expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim,
contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o
socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão.
Hamilton
Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino são
jornalistas