30 de setembro de 2012

Entrevista: Khaled Fouad Allam


Síria e a nova geopolítica do Oriente Médio
Por IHU On-Line

Khaled Fouad Allam é sociólogo e político argelino, naturalizado italiano. Atualmente leciona na Universidade de Trieste, na Itália. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a origem do conflito político na Síria? Como descreve os confrontos que ocorrem no país desde 2011, onde parte da população quer a queda do regime de Assad e outros defendem sua continuação? Quais são as raízes históricas desse conflito, que explodiu em 2011?
Khaled Fouad Allam – Diferentemente de quanto aconteceu nos outros países árabes, o conflito político que se desencadeou na Síria é o produto da “primavera árabe”, mas é também o resultado de uma situação relativamente singular. O regime alaouitaha, sempre visto como um regime “laico”, no qual coexistem pacificamente as minorias étnico-religiosas – curdos, armênios, drusos, sunitas, cristãos, xiitas – e os alaouiti representam uns 10% da população. Mas, para manter certa coesão, o regime usou a violência política como modalidade de estruturação do Estado. Nos momentos de crise o Estado usou a violência para manter a própria legitimidade. O que ocorreu em 2011 em escala nacional reforça quanto havia ocorrido em 1981 em escala local. A “primavera árabe” desencadeou, pois, uma generalização do conflito sobre todo o território nacional.

IHU On-Line Por que, diferentemente dos regimes da Tunísia e do Egito, o regime ditatorial de Assad consegue resistir aos conflitos e se manter no poder?
Khaled Fouad Allam – Sobre as revoluções árabes, pode-se dizer que esta parte do mundo sai de um ciclo histórico para entrar num outro que representa uma incógnita. Mas há profundas diferenças entre as revoluções dos anos 1950 e 1960 no mundo árabe e as de hoje: o fim do nacionalismo árabe e o nascimento de um novo fenômeno que chamamos “islamo-nacionalismo”, no qual as novas gerações procuram resolver aquilo que para seus progenitores era um conflito, vale dizer, a relação entre nacionalismo e islã. Isso explica em parte o crescimento exponencial do fundamentalismo e o retorno do debate político sobre estado e a shari’a. Vão neste sentido os hodiernos conflitos políticos e sociais na Tunísia e no Egito, centrados na questão feminina na Tunísia e no tratamento das minorias religiosas no Egito. Em ambos os países a norma islâmica discrimina entre homens e mulheres e entre muçulmanos e não muçulmanos.

IHU On-Line Qual foi a influência da Primavera Árabe nos conflitos da Síria? Qual foi a relevância social e política das manifestações e qual seu reflexo atual?

Khaled Fouad Allam – Os regimes árabes são regimes autoritários que podem se tornar despóticos. Em parte isso explica como a construção do estado-nação no século XX se tenha desenvolvido num contexto de guerra fria, de forte influência da União Soviética que apoiava os países não alinhados e na qual grande parte da classe dirigente provinha das academias militares. Por conseguinte, no decurso do século XX, o estado no mundo árabe se construiu contra a própria sociedade, e as derivas autoritárias cancelaram frequentemente os direitos humanos e todas as formas de liberdade pública. Isso explica também como precisamente nos anos 1960 e 1970 se tenha desenvolvido a contestação islamita em todos os países árabes, e como esta tenha sido reprimida pelos mesmos regimes. A propósito, assinalo os estudos de Gilles Kepel e de Robert Mitchelise e o meu ensaio sobre “O islã global”.

IHU On-Line Como compreender a permanência de um regime ditatorial em pleno século XXI?
Khaled Fouad Allam – Em quase todos os países árabes, e entre eles a Síria, os regimes políticos são de tipo dinástico, e sua manutenção no tempo não se baseou sobre o princípio democrático, mas sobre o autoritarismo.

IHU On-Line Por quais razões China e Rússia vetaram a resolução contra o governo de Assad, no Conselho de Segurança da ONU? Como esses países se beneficiam com o conflito armado?
Khaled Fouad Allam – Em particular, a Rússia sempre tem sido um aliado estratégico da Síria, tanto durante como após a guerra fria; o exército sírio foi formado pelos russos. Do ponto de vista geopolítico, tanto a China como a Rússia consideram a Síria o epicentro do Oriente Médio: quando se despreza a Síria, se despreza toda a região, com graves consequências sobre as minorias muçulmanas na Rússia e na China. Para estes países, a Síria é uma importante cunha da geopolítica do Oriente Médio.

IHU On-Line Qual é a participação da religião na política desenvolvida na Síria? Ela interfere nas decisões políticas e nos rumos do país? A “guerra civil” instalada no país tem um fundamento religioso?
Khaled Fouad Allam – As relações entre religião e política na Síria se distinguem daquelas dos outros países árabes, porque existe certa forma de laicismo. Mas isso não significa que não se tenha desenvolvido o fundamentalismo islâmico. Já no início dos anos 1980, na onda da revolução iraniana, houve importantes manifestações de fundamentalistas islâmicos, que foram reprimidas pelo governo da época.

IHU On-Line Como muçulmanos xiitas e sunitas se relacionam no país?
Khaled Fouad Allam – Na realidade, as relações entre xiitas e sunitas, tanto na Síria como alhures, sempre têm sido tensas; o conflito na base do divórcio (fitna) entre sunitas e xiitas jamais foi sanado. Isso não impede que, no plano sociológico, existam lugares de convivência relativamente pacíficos que, no entanto, podem explodir nos momentos de crise, como no atual.

IHU On-Line Qual é a relação entre muçulmanos e demais religiões presentes na Síria? Há dialogo inter-religioso, especialmente com os cristãos?
Khaled Fouad Allam – Desde sempre a Síria é um exemplo de coexistência entre muçulmanos e outras confissões. Mas as ideologias e os vários nacionalismos podem pôr em crise a coexistência entre os grupos.
IHU On-Line Qual é a atual situação dos cristãos na Síria e como se manifestam frente a permanência do regime de Assad? Há medo e risco de que, caso haja abertura democrática, os cristãos sejam perseguidos?
Khaled Fouad Allam – Na Síria, os cristãos se sentem em perigo por causa da guerra civil em curso, e sua comunidade se encontra ameaçada. Isso explica os temores manifestados pelas hierarquias cristãs no país Síria diante da atual situação.

IHU On-Line Qual o significado da declaração de Assad, quando ele afirma que está se formando um novo mapa geoestratégico que alinha a Síria, a Turquia, o Irã, a Rússia juntando política, interesses e infraestrutura? O Oriente Médio está se modificando?
Khaled Fouad Allam – O mundo árabe está mudando totalmente, está entrando num novo ciclo de sua história. A Síria representa a pedra angular, enquanto há aí novos atores políticos, a Turquia e o Irã, países que veem nela o núcleo de novas hegemonias regionais. E tudo isso está evoluindo ante a ausência da Europa.

IHU On-Line Quais são os conflitos entre Israel e Síria?
Khaled Fouad Allam – Além da questão do Golã, é evidente que Israel está perdendo sua “cintura de segurança”, que era formada pelo Egito, mas em parte também pela Síria. Isso torna muito mais complexa a crise síria, e haverá um notável impacto sobre todos os equilíbrios mundiais.

IHU On-Line Com quais países do Oriente Médio a Síria se relaciona e com quais ela diverge?
Khaled Fouad Allam – A Síria, que era um país importante dentro da Liga árabe e da Organização da Conferência islâmica, encontra-se hoje isolada. Todavia, este isolamento é coberto e culminado pela Rússia e pela China.

IHU On-Line Como foi o encontro que discutiu a questão política e religiosa da Síria, organizado pela Associação Sírios Livres na Itália? Quais os principais apontamentos do jesuíta Paolo Dall'Oglio?
Khaled Fouad Allam – O Pe. Dall’Oglio testemunhou a situação na Síria vista a partir de seu mosteiro, uma experiência bela, mas também dramática. Durante um encontro, do qual participei junto ao padre Dall'Oglio e a Massimo Cacciari, os sírios, além de suas diversidades étnicas e religiosas, manifestaram um desejo de unidade – e era recorrente o lema “o povo sírio é uno e único”. Mas tudo isto é construído politicamente.
Retirado do site IHU On-Line.

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Entrevista: Carlos Nelson Coutinho


Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia
Por Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino

Carlos Nelson Coutinho, um dos intelectuais marxistas mais respeitados do Brasil, recebeu a Caros Amigos em seu apartamento no bairro do Cosme Velho, Rio de Janeiro, para uma conversa sobre os caminhos e descaminhos da esquerda brasileira, sua decepção com o governo Lula e as possibilidades de superação do capitalismo.
Estudioso de Antonio Gramsci, Coutinho defende a atualidade de Marx e reafirma o que disse em seu polêmico artigo “Democracia como valor universal”, publicado há 30 anos: “Sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia”.
CNC faleceu na madrugada do dia 20/9/2012, vítima de câncer. Essa entrevista foi publicada na edição 153 da revista, que circulou a partir de dezembro de 2009 — confira as edições anteriores na loja Caros Amigos

Hamilton Octávio de Souza — Queremos saber da sua história, onde nasceu, onde foi criado, como optou por esta carreira..
Caros Nelson Coutinho — Nasci na Bahia, em uma cidade do interior chamada Itabuna, mas fui para Salvador muito pequenininho, com uns 3 ou 4 anos. Me formei em Salvador, e as opções que eu fiz, fiz em Salvador. Eu nasci em 1943, glorioso ano da batalha de Stalingrado. Me formei em filosofia na Universidade Federal da Bahia, um péssimo curso, e com meus 18 ou 19 anos sabia mais do que a maioria dos professores. Meus pais eram baianos também. Meu pai era advogado e foi deputado estadual durante três legislaturas da UDN. Publicamente ele não era de esquerda, mas dentro de casa ele tinha uma posição mais aberta. Eu me tornei comunista lendo o Manifesto Comunista que o meu pai tinha na biblioteca. Ele era um homem culto, tinha livros de poesia. Minha irmã, que é mais velha, disse que eu precisava ler o Manifesto Comunista. Foi um deslumbramento. Eu devia ter uns 13 ou 14 anos. Aí fiz faculdade de Direito por dois ano porque era a faculdade onde se fazia política, e eu estava interessado em fazer política. Me dei conta que uma maneira boa de fazer política era me tornando intelectual. Aos 17 anos entrei no Partido Comunista Brasileiro, que naquela época tinha presença. O primeiro ano da faculdade foi até interessante porque tinha teoria geral do Estado, economia política, mas quando entrou o negócio de direito penal, direito civil, aí eu vi que não era a minha e fui fazer filosofia.

Renato Pompeu — Mas quais eram as suas referências intelectuais?
CNC — Em primeiro lugar, Marx, evidentemente, mas também foram muito fortes na minha formação intelectual o filósofo húngaro George Lukács e Gramsci. Eu tenho a vaidade de ter sido um dos primeiros a citar Gramsci no Brasil, porque aos 18 anos eu publiquei um artigo sobre ele na revista da faculdade de Direito. Aí eu vim para o Rio e fui trabalhar no Tribunal de Contas. Me apresentei ao João Vieira Filho para trabalhar e ele me falou: “meu filho, vá pra casa e o que você precisar de mim me telefone”. Eu fiquei dois ou três anos aqui sem trabalhar, mas a situação ficou inviável. Pedi demissão e fui, durante um bom tempo, tradutor. Eu ganhava a vida como tradutor, traduzi cerca de 80 ou 90 livros. Em 76, eu fui para a Europa. Passei 3 anos fora, não fui preso, mas senti que ia ser, foi pouco depois da morte do Vlado. Então morei na Europa por três anos, onde acho que aprendi muita política. Morei na Itália na época do florescimento do eurocomunismo, que me marcou muito. O primeiro texto que publiquei é exatamente este artigo da “Democracia como valor universal” que causou, sem modéstia, um certo auê na esquerda brasileira na época. Até hoje há citações de que é um texto reformista, revisionista. Enfim, voltei do exílio e entrei na universidade, na UFRJ, onde eu estou há quase 28 anos. Passei por três partidos políticos na vida. Entrei no PCB, como disse antes, aos 17 anos, onde fiquei até 1982, quando me dei conta que era uma forma política que tinha se esgotado. Nesse momento, surge evidentemente uma coisa que o PC não esperava e não queria, que é um partido realmente operário, no sentido de ter uma base operária. O mal-estar do PCB contra o PT no primeiro momento foi enorme. Eu saí do PCB, mas não entrei logo no PT. Só entrei no PT no final da década de 80, entrei junto com o [Milton] Temer e o Leandro Konder. Fizemos uma longa discussão para ver se entrávamos ou não, e ficamos no PT até o governo Lula, quando nos demos conta que o PT não era mais o PT. Saí e fui um dos fundadores do PSOL, que ainda é um partido em formação. Ele surge num momento bem diferente do momento de formação do PT, de ascensão do movimento social articulado com a ascensão do movimento operário. E o PSOL surge exatamente em um momento de refluxo. Nessa medida, ele é ainda um partido pequeno, cheio de correntes. Eu sou independente, não tenho corrente. Podemos dizer o seguinte: eu tinha um casamento monogâmico com o PCB, com o PT já me permitia traições e no PSOL é uma amizade colorida.

Tatiana Merlino — Em uma entrevista recente o senhor falou sobre o avanço e o triunfo da pequena política sobre a grande política dentro do governo Lula. Você pode falar um pouco sobre isso?
CNC — Gramsci faz uma distinção entre o que chama de grande política e pequena política. A grande política toma em questão as estruturas sociais, ou para modificá-las, ou para conservá-las. A pequena política de Gramsci é a política da intriga, do corredor, a intriga parlamentar, não coloca em discussão as grandes questões. Durante algum tempo, o Brasil passou por uma fase de grande política. Se a gente lembrar, por exemplo, a campanha presidencial de 89, sobretudo o segundo turno, tinha duas alternativas claras de sociedade. Não sei se, caso o PT ganhasse, ia cumpri-la, mas, do ponto de vista do discurso, tinha uma alternativa democrático-popular e uma alternativa claramente neoliberal. Até certo momento, no Brasil, nós tivemos uma disputa que Gramsci chamaria de grande política. A partir, porém, sobretudo, da vitória eleitoral de Lula, eu acho que a redução da arena política acaba na pequena política, ou seja, que no fundo não põe em discussão nada estrutural. Eu diria que é a política tipo americana. Obviamente o Obama não é o Bush, mas ninguém tem ilusão de que o Obama vai mudar as estruturas capitalistas dos Estados Unidos, ou propor uma alternativa global de sociedade. Então, o que está acontecendo no Brasil é um pouco isso, dando Dilma ou dando Serra não vai mudar muita coisa não. Até às vezes desconfio que o Serra pode fazer uma política menos conservadora, mas depois vão me acusar de ter aderido a ele. Eu até faço uma brincadeira, dizendo que a política brasileira “americanalhou”, virou essa coisa... Então, neste sentido eu entrei no PSOL até com essa ideia de criar uma proposta realmente alternativa. Infelizmente o PSOL não tem força suficiente para fazer essa proposta chegar ao grande público, mas é uma tentativa modesta de ir contra a pequena política.

Renato Pompeu — Você não acha que esse americanalhamento aconteceu na própria pátria do Gramsci?
CNC — Ah, sem dúvida. A predominância da pequena política é uma tendência mundial. Me lembro que logo depois da abertura eu escrevi uns dois ou três artigos em que dizia que o Brasil se tornou uma sociedade complexa. O Gramsci a chamaria de ocidental, que é uma sociedade civil desenvolvida, forte e tal. Mas há dois modelos de sociedade ocidental - um modelo que eu chamava de americano, que é este onde há sindicalismo, mas o sindicalismo não se põe nas estruturas, há um bipartidarismo, mas os partidos são muito parecidos, e o que eu chamava de modelo europeu, onde há disputa de hegemonia. Ou seja, se alguém votava no partido comunista na Itália, sabia que estava votando em uma proposta de outra ordem social. Se alguém votava no Labour Party na Inglaterra durante um bom tempo, pelo menos o programa deles era socialista, de socialização dos meios de produção. E quem votava no partido conservador queria conservar a ordem. O Brasil tinha como alternativa escolher um ou outro modelo. Por exemplo, havia partidos que são do tipo americano, como o PMDB, mas havia partidos que são do tipo europeu, como o PT. Havia um sindicalismo de resultado e um sindicalismo combativo (CUT, por exemplo), mas tudo isso era naquela época. Depois a hegemonia neoliberal, em grande parte, americanalhou a política mundial. A Europa hoje é exatamente isso, são partidos que diferem muito pouco entre si. Há um “americanalhamento”. É um fenômeno universal e é uma prova da hegemonia forte do neoliberalismo.

Tatiana Merlino — Então o avanço da pequena sobre a grande política está sendo mundial?
CNC — É um fenômeno mundial, não é um fenômeno brasileiro. Mas veja só, começam a surgir na América Latina formas que tentam romper com este modelo da pequena política. Estou falando claramente de Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, ainda que eu não seja um chavista, até porque eu acho que o modelo que o Chávez tenta aplicar na Venezuela não é válido para o Brasil, que é uma sociedade mais complexa, mais articulada. Mas certamente é uma proposta que rompe com a pequena política. Quando o Chávez fala em socialismo, ele recoloca na ordem do dia, na agenda política, uma questão de estrutura.

Tatiana Merlino — Então é um socialismo novo, do século 21.
CNC — Que socialismo é esse?
Eu não sei, aí tem que perguntar para o Chávez. Olha, eu não gosto dessa expressão “socialismo do século 21”, eu diria “socialismo no século 21”.

Renato Pompeu — E como seria o socialismo no século 21?
CNC — Socialismo não é um ideal ético ao qual tendemos para melhorar a ordem vigente. O socialismo é uma proposta de um novo modo de produção, de uma nova forma de sociabilidade, e nesse sentido eu acho que o socialismo é, mesmo no século 21, uma proposta de superar o capitalismo. Novidades surgiram, por exemplo: quem leu o Manifesto Comunista, como eu, vê que Marx e Engels acertaram em cheio na caracterização do capitalismo. A ideia da globalização capitalista está lá no Manifesto Comunista, o capitalismo cria um mercado mundial, expande e vive através de crises. Essa ideia de que a crise é constitutiva do capitalismo está lá em Marx. Mas há um ponto que nós precisamos rever em Marx, e rever certas afirmações, que é o seguinte: Quem é o sujeito revolucionário? Nós imaginamos construir uma nova ordem social. Naturalmente, para ser construída, tem que ter um sujeito. Para Marx, era a classe operária industrial fabril, e ele supunha, inclusive, que ela se tornaria maioria da sociedade. Acho que isso não aconteceu. O assalariamento se generalizou, hoje praticamente todas as profissões são submetidas à lei do assalariamento, mas não se configurou a criação de uma classe operária majoritária. Pelo contrário, a classe operária tem até diminuído. Então, eu diria que este é um grande desafio dos socialistas hoje. Hoje em dia tem aquele sujeito que trabalha no seu gabinete em casa gerando mais-valia para alguma empresa, tem o operário que continua na linha de montagem... Será que este cara que trabalha no computador em casa se sente solidário com o operário que trabalha na linha de montagem? Você vê que é um grande desafio. Como congregar todos estes segmentos do mundo do trabalho permitindo que eles construam uma consciência mais ou menos unificada de classe e, portanto, se ponham como uma alternativa real à ordem do capital?

Renato Pompeu — Aí tem o problema dos excluídos...
CNC — Eu tenho sempre dito que as condições objetivas do socialismo nunca estiveram tão presentes. Prestem atenção, o Marx, no livro 3 do “Capital”, diz o seguinte: O comunismo implica na ampliação do reino da liberdade e o reino da liberdade é aquele que se situa para além da esfera do trabalho, é o reino do trabalho necessário, é o reino onde os homens explicitarão suas potencialidades, é o reino da práxis criadora. Até meio romanticamente ele chega a dizer no livro “A Ideologia Alemã” que o socialismo é o lugar onde o homem de manhã caça, de tarde pesca e de noite faz crítica literária, está liberto da escravidão da divisão do trabalho. E ele diz que isso só pode ser obtido com a redução da jornada de trabalho. O capitalismo desenvolveu suas forças produtivas a tal ponto que isso se tornou uma possibilidade, a redução da jornada de trabalho, o que eliminaria o problema do desemprego. O cara trabalharia 4 horas por dia, teria emprego para todos os outros. E por que isso não acontece? Porque as relações sociais de produção capitalista não estão interessadas nisso, não estão interessadas em manter o trabalhador com o mesmo salário e uma jornada de trabalho muito menor. Então, eu acho que as condições para que a jornada de trabalho se reduza e, portanto, se crie espaços de liberdade para a ação, para a práxis criadora dos homens, são um fenômeno objetivo real hoje no capitalismo. Mas as condições subjetivas são muito desfavoráveis. A morfologia do mundo do trabalho se modificou muito. Muita gente vive do trabalho com condições muito diferenciadas, o que dificulta a percepção de que eles são membros de uma mesma classe social. Então, esse é um desafio que o socialismo no século 21 deve enfrentar. Um desafio também fundamental é repensar a questão da democracia no socialismo. Eu diria que, em grande parte, o mal chamado “socialismo real” fracassou porque não deu uma resposta adequada à questão da democracia. Eu acho que socialismo não é só socialização dos meios de produção – nos países do socialismo real, na verdade, foi estatização – mas é também socialização do poder político. E nós sabemos que o que aconteceu ali foi uma monopolização do poder político, uma burocratização partidária que levou a um ressecamento da democracia. A meu ver, aquilo foi uma transição bloqueada. Eu acho que os países socialistas não realizaram o comunismo, não realizaram sequer o socialismo e temos que repensar também a relação entre socialismo e democracia. Meu texto, “Democracia como valor universal”, não é um abandono do socialismo. Era apenas uma maneira de repensar o vínculo entre socialismo e democracia. Era um artigo ao mesmo tempo contra a ditadura que ainda existia e contra uma visão “marxista-leninista”, o pseudônimo do stalinismo, que o partido ainda tinha da democracia. Acho que este foi o limite central da renovação do partido.

Marcelo Salles — E nesse “Democracia como valor universal”, você disse recentemente que defende uma coisa que não foi muito bem entendida: socialismo como condição da plena realização da democracia...
CNC — Uma alteração que eu faria no velho artigo era colocar não democracia como valor universal, mas democratização como valor universal. Para mim a democracia é um processo, ela não se identifica com as formas institucionais que ela assume em determinados contextos históricos. A democratização é o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político. Então, eu acredito que a plena socialização do poder político, ou seja, da democracia, só pode ocorrer no socialismo, porque numa sociedade capitalista sempre há déficit de cidadania. Em uma sociedade de classes, por mais que sejam universalizados os direitos, o exercício deles é limitado pela condição classista das pessoas. Neste sentido, para a plena realização da democracia, o autogoverno da sociedade só pode ser realizado no socialismo. Então, eu diria que sem democracia não há socialismo, e sem socialismo não há democracia. Acho que as duas coisas devem ser sublinhadas com igual ênfase.

Hamilton Octávio de Souza — Nós saímos de um período de 21 anos de ditadura militar, essa chamada democracia que nós vivemos, qual é o limite? O que impende o avanço mesmo que não se construa uma nova sociedade?
CNC — Eu acho que temos uma tendência, que me parece equivocada, de tratar os 21 anos da ditadura como se não houvesse diferenças de etapas. Eu acho – e quem viveu lembra – que, de 64 ao AI-5, era ditadura, era indiscutível, mas ainda havia uma série de possibilidades de luta. Do AI-5 até o final do governo Geisel, foi um período abertamente ditatorial. No governo Figueiredo, há um processo de abertura, um processo de democratização que vai muito além do projeto de abertura da ditadura. Tem um momento que os intelectuais mais orgânicos da ditadura, como o Golbery, por exemplo, percebem que “ou abre ou pipoca”. O projeto de abertura foi então atravessado pelo que eu chamo de processo de abertura da sociedade real. Eu não concordo com o Florestan Fernandes quando ele chama a transição de conservadora. Eu acho que ocorreu ali a interferência de dois processos: um pelo alto, porque é tradicional na história brasileira as transformações serem feitas pelo alto, o que resultou na eleição de Tancredo. Mas também houve a pressão de baixo. A luta pelas “Diretas” foi uma coisa fundamental, também condicionou o que veio depois. Esta contradição se expressa muito claramente na Constituição de 88, que tem partes extremamente avançadas. Todo o capítulo social é extremamente avançado, embora a ordem econômica tenha sido mais ou menos mantida. Mas a Constituição é tanto uma contradição que o que nós vimos foi a ação dos políticos neoliberais, dos governos neoliberais de tentar mudá-la, de extirpar dela aquelas conquistas que nós podemos chamar de democráticas. Eu acho que o Brasil hoje é uma sociedade liberal-democrática no sentido de que tem instituições, voto, partidos e tal. Mas, evidentemente, é uma democracia limitada, sobretudo no sentido substantivo. A desigualdade permanece.

Hamilton Octávio de Souza — Mas hoje o que está mais estrangulado para o avanço na democracia ainda no marco de uma sociedade capitalista?
CNC — Eu acho que a ditadura reprimiu a esquerda, nos torturou, assassinou muitos de nós, nos obrigou ao exílio, mas não nos desmoralizou. Eu acho que a chegada do Lula ao governo foi muito nociva para a esquerda. Ninguém esperava que o governo Lula fosse empreender por decreto o socialismo, mas pelo menos um reformismo forte, né? Eu acho que a decepção que isso provocou, mais toda a história do mensalão e tal, é um dos fatores que limitam o processo de aprofundamento da democracia no Brasil. Entre outras coisas porque o governo Lula, que é um governo de centro, cooptou os movimentos sociais. Temos a honrosa exceção do MST que não é assim tão exceção porque eles são obrigados... tem cesta básica nos assentamentos e tal, eles são obrigados também a fazer algumas concessões, mas a CUT... Qual a diferença da CUT e da Força Sindical? Eu acho que essa transformação da política brasileira em pequena política, que se materializou com o governo Lula, que não é diferente do governo Fernando Henrique, foi o fator que bloqueou o avanço democrático. Até 2002, havia um acúmulo de forças da sociedade brasileira que apontava para o aprofundamento da democratização, e o sujeito deste processo era o PT, o movimento social. Na medida em que isso se frustrou, eu acho que houve um bloqueio no avanço democrático na época. O neoliberalismo enraizou-se muito mais fortemente na Argentina do que no Brasil porque aqui havia uma resistência do PT e dos movimentos sociais. Com a chegada ao governo, essa resistência desapareceu. Então, de certo modo, é mais fácil a classe dominante hoje fazer passar sua política em um governo petista do que em um governo onde o PT era oposição.

Tatiana Merlino — Então a conjuntura seria um pouco menos adversa se estivesse o José Serra no poder e o PT como oposição?
CNC — Eu não gostaria de dizer isso, mas eu acho que sim. Mas isso coloca uma questão: e se demorasse mais quatro anos para o PT chegar ao governo, ia modificar estruturalmente o que aconteceu com o PT? Até um certo momento, é clara no partido uma concepção socialista da política. A partir de um certo momento, porém, antes de Lula ir ao governo, o PT abandonou posturas mais combativas. Ele fez isso para chegar ao governo. Mas se demorasse mais quatro anos, ou oito anos, não aconteceria o mesmo? Não sei. Não quero ser pessimista também, não era fatal o que aconteceu com o PT.

Renato Pompeu — Você é professor de qual disciplina?
CNC — De teoria política.

Renato Pompeu — Você é um cientista político ou um filósofo da política?
CNC — Não, não. Filósofo tudo bem, mas cientista político não. Porque ciência política para mim é aquela coisa que os americanos fazem, ou seja, pesquisa de opinião, sistema partidário, a ciência política é a teoria da pequena política. Eu sou professor da escola de Serviço Social.

Hamilton Octávio de Souza — Que projeto que você identifica hoje no panorama brasileiro: a burguesia nacional tem um projeto? As correntes de esquerda têm um projeto? Existe um projeto de nação hoje?
CNC — Isso é um conceito interessante, porque este é um conceito criado em grande parte pela Internacional Comunista e pelo PCB, de que haveria uma burguesia nacional oposta ao imperialismo. Eu me lembro quando eu entrei no partido, eu era meio esquerdista e vivia perguntando ao secretário-geral do partido na Bahia: Quem são os membros da burguesia nacional? E um dia ele me respondeu: “José Ermírio de Moraes e Fernando Gasparian”. Olha, duas pessoas não fazem uma classe. Do ponto de vista nosso, da esquerda, uma das razões da crise do socialismo, das dificuldades que vive o socialismo hoje, é a falta de um projeto. A social-democracia já abandonou o socialismo há muito tempo, e nos partidos de esquerda antagonistas ao capitalismo há uma dificuldade de formulação de um projeto exequível de socialismo. Na maioria dos casos, estes partidos defendem a permanência do Estado do bem-estar social que está sendo desconstruído pelo liberalismo. É uma estratégia defensivista. Essa é outra condição subjetiva que falta, a formulação clara de um projeto socialista. Do ponto de vista das classes dominantes, eu acho que eles têm um projeto que estava claro até o momento da crise do neoliberalismo. Foi o que marcou o governo Collor e o governo Fernando Henrique e o que está marcando também o governo Lula, com variações. Evidentemente, há diferenças, embora a meu ver, não estruturais. Esse é o projeto da burguesia. Com a crise, eu acho que algumas coisas foram alteradas, então, uma certa dose de keynesianismo se tornou inevitável, mas sempre em favor do capital e nunca em favor da classe trabalhadora. Tenho um amigo que diz. “Estado mínimo para os trabalhadores e máximo para o capital”. No fundo, é essa a proposta do neoliberalismo: desconstrução de direitos, concessão total de todas as relações sociais ao mercado, subordinação do público ao privado, ao capital internacional. Não há burguesia anti-imperialista no Brasil, definitivamente. Pode haver um burguês que briga com o seu concorrente e o seu concorrente é um estrangeiro, mas nem assim ele vai ser anti-imperialista.

Hamilton Octávio de Souza — Você vê alguma alteração a curto prazo?
CNC — O que poderia mudar isso seria um fortalecimento dos movimentos sociais, da sociedade civil organizada sob a hegemonia da esquerda. E pressionar para que reformas fossem feitas e se retomasse uma política econômica mais voltada para as classes populares. Tem um mote de Gramsci que eu acho muito válido, que é: “pessimismo da inteligência e otimismo da vontade”. A esquerda não pode ser otimista numa análise do que está acontecendo no mundo porque a esquerda tem perdido sucessivas batalhas. Então ser otimista frente a um quadro desses é difícil. Quanto mais nós somos pessimistas, mais otimismo da vontade temos de ter, mais a gente deve ter clareza que só atuando, só dedicando todo o nosso empenho à mudança disso é que essa coisa pode ser mudada. Então, a esperança de mudança seguramente há, há potencialidades escondidas na atual sociedade que permitem ver e pensar a superação do capitalismo. O capital não pode perdurar. A alternativa ao socialismo, como dizia a Rosa Luxemburgo, é a barbárie. Se o capitalismo continuar, teremos cada vez mais uma barbarização da sociedade que nós já estamos assistindo.

Hamilton Octávio de Souza — Por conta do neoliberalismo, tivemos um aumento do desemprego estrutural, a informalidade do trabalho, o desrespeito à legislação trabalhista, estamos numa condição de perdas de conquistas, direitos. Como é que se explica a fraqueza do movimento social diante disso?
CNC — A certeza que nós temos de que o capitalismo não vai resolver os problemas nem do mundo nem do Brasil nos faz acreditar que, primeiro, a história não acabou, e, portanto, ela está se movendo no sentido de contestar a independência barbarizante do capital. Onde eu vejo focos, no Brasil de hoje, é no MST. Uma coisa que funciona muito bem no MST é a preocupação deles com a formação dos quadros. Eu fui de um partido, o PCB, que tinha curso, mas as pessoas iam para Moscou, faziam a escola do partido. O PT nunca se preocupou com formação de quadros, não tinham escolas, e o MST tem. Eu acho que o MST tem uma ambiguidade de fundo que é complicada. Ele é um movimento social e, como todo movimento social, ele é particularista, defende o interesse dos trabalhadores que querem terra. Essa não pode ser uma demanda generalizada da sociedade. Eu não quero um pequeno pedaço de terra, nem você. O partido político é quem universaliza as demandas, formula uma proposta de sociedade que engloba as demandas dos camponeses, proletários, das mulheres... O MST tem uma ambiguidade porque ele é um movimento que frequentemente atua como partido. Eu acho que isso às vezes limita a ação do MST.

Marcelo Salles — O termo “Ditadura do Proletariado” que vez ou outra algum liberal usa...
CNC — Na época de Marx, ditadura não tinha o sentido de despotismo que passou a ter depois. Ditadura é um instituto do direito romano clássico que estabelecia que, quando havia uma crise social, o Senado nomeava um ditador, que era um sujeito que tinha poderes ilimitados durante um curto período de tempo. Resolvida a crise social, voltava a forma não ditatorial de governo. Então, quando o Marx fala isso, ele insiste muito que é um período transitório: a ditadura vai levar ao comunismo, que para ele é uma sociedade sem Estado. Ele se refere a um regime que tem parlamento, que o parlamento é periodicamente reeleito, e que há a revogabilidade de mandato. Então, essa expressão foi muito utilizada impropriamente tanto por marxistas quanto por antimarxistas. Apesar de que em Lênin eu acho que a ditadura do proletariado assume alguns traços meio preocupantes. Em uma polêmica com o Kautsky, ele diz: ditadura é o regime acima de qualquer lei. Lênin não era Stálin, mas uma afirmação desta abriu caminho para que Stálin exercesse o poder autocrático, fora de qualquer regra do jogo, acima da lei. Tinha lei, tinha uma Constituição que era extremamente democrática, só que não valia nada.

Marcelo Salles — Estão sempre dizendo que não teria liberdade de expressão no socialismo, porque o Estado seria muito forte, e teria o partido único...
CNC — Em primeiro lugar, não é necessário que no socialismo haja partido único, e não é desejável, até porque, poucas pessoas sabem, mas no início da revolução bolchevique o primeiro governo era bipartidário. Era o partido bolchevique e o partido social-revolucionário de esquerda. Depois, eles brigaram e ficou um partido só. Mas não é necessário que haja monopartidarismo. Segundo, Rosa Luxemburgo – marxista, comunista, que apoiou a revolução bolchevique – dizia o seguinte: liberdade de pensamento é a liberdade de quem pensa diferente de nós. Então, não há na tradição marxista a ideia de que não haja liberdade de expressão, mas uma coisa é liberdade de expressão e outra coisa é o monopólio da expressão. Liberdade de expressão sim, contanto que não seja uma falsa liberdade de expressão. Eu acho que o socialismo é condição de uma assertiva liberdade de expressão.
Retirado do site Caros Amigos.

Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino são jornalistas

Três aniversários (economia)

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Por Adriano Benayon

I — 24 de agosto de 1954
Este aniversário é o da deposição do presidente Getúlio Vargas, programada e dirigida pelos serviços secretos estadunidense e britânico.
2. A quadra histórica era decisiva. O  Brasil – desde sempre dotado de colossais recursos naturais – havia, a partir de 1930, acelerado o processo de substituição de importações industriais, graças a três fatores principais:
a) a falta de divisas, advinda da crise financeira e econômica mundial, com a queda da demanda por café e outros produtos primários;
b) a tensão entre potências mundiais de 1933 a 1939, e daí a 1945 a Segunda Guerra Mundial;
c) a Revolução de outubro de 1930 e os posteriores eventos políticos no Brasil até à primeira deposição de Getúlio Vargas, em 29.10.1945.
3. Os dois primeiros fatores são as condições de crise e oportunidade. O terceiro é o papel das instituições políticas  geradas em resposta à crise, as quais transformaram a estrutura econômica no sentido de reduzir a dependência da exportação de matérias-primas. Além disso, Vargas mandou proceder à auditoria da dívida e liquidou os títulos no mercado secundário, com grande desconto.
4. Ele se manteve na chefia do governo durante aqueles 15 anos, conquanto de novembro de 1937 a 1945 dependesse das Forças Armadas, a fonte de poder instituidora do Estado Novo.
5. Por terem as políticas de Getúlio Vargas desagradado as potências anglo-americanas, era questão de tempo ele ser apeado da presidência,  terminada a Guerra Mundial (maio de 1945).
6. Durante a Guerra,  Vargas teve de colaborar com essas potências, as quais, não mais precisando dele, teleguiaram  a oligarquia local, políticos, mídia e chefes militares para depor o “ditador”, sob o pretexto de que queria ficar no poder.
7. Isso não tinha cabimento, porque Vargas convocara eleições e se dispunha a passar a presidência ao eleito. O golpe de 1945 foi só vingança e tentativa de humilhar o líder trabalhista.
8.  Por ocasião do golpe de 1937, os chefes militares, movidos pelo anticomunismo, estavam divididos entre simpatizantes do imperialismo anglo-americano e partidários das potências nazi-fascistas.  Assim, Vargas pôde atuar como fiel da balança e no interesse nacional.
9. Os militares nacionalistas não ocupavam posições que lhes habilitassem a  imprimir rumos diferentes, em 1937, e menos ainda em 1945, quando os de tendência fascista convergiram com os admiradores das potências anglo-americanas.
10. Eleito em 1945, o Marechal  Dutra (1946-1950), mentor do golpe de 1937, reprimiu os comunistas, converteu-se mais que à “democracia” , à abertura irrestrita às políticas do agrado de Washington.
11. Entretanto,  Vargas ganhara  a simpatia dos trabalhadores, elegeu-se senador por vários Estados, e voltou à presidência em 1951, por grande maioria popular. Criou a Petrobrás e deu  passos para a fundação da Eletrobrás. Apoiou os excelentes projetos de sua assessoria econômica e cuidou de deter as abusivas remessas de lucros ao exterior das transnacionais.
12. Se prosseguissem as realizações de Vargas,  o Brasil teria chances de se desenvolver,  e esse foi o móvel do golpe de agosto de 1954, organizado pelas potências imperiais.
13. Os agentes externos postos por esse golpe  na direção da política econômica instituíram enormes subsídios em favor dos investimentos  das transnacionais, que operavam em muitos mercados no exterior, cada um de dimensões muito maiores que o brasileiro.
14. Em vez de proteger as indústrias de capital nacional para viabilizar competirem com as transnacionais, aquelas sofreram discriminação,  com os imensos subsídios que só podiam ser utilizados pelas corporações estrangeiras.
15. Eleito para o quinquênio 1956-1960, Juscelino manteve esses subsídios e estabeleceu facilidades adicionais para as empresas estrangeiras. Implantadas no País, estas transferem ao exterior, de diversas maneiras, os enormes lucros obtidos no mercado brasileiro, causando déficits no Balanço de Pagamentos.
16. Primeira cena dessa tragicomédia: eleito, antes de tomar posse, JK viajou ao exterior para atrair investimentos estrangeiros, com notórios entreguistas na comitiva.  Segunda cena: sai JK, entra Jânio Quadros, e este envia ao exterior missão chefiada por Roberto Campos para rolar dívidas externas vencidas, contratadas durante o governo de JK.
17. Depois do conturbado período entre a renúncia de Jânio e o golpe de 1964, derrubando Goulart, o primeiro governo militar, a pretexto de fazer face à alta da inflação e à crise externa, adotou, sob a direção de Roberto Campos, políticas fiscal, monetária e de crédito restritivas, eliminando grande número de empresas nacionais.
18. As lições econômicas disso tudo são importantes, como também as lições políticas. Entre elas avulta esta: prevalece sobre a Constituição escrita  a regra constitucional, não-escrita, de que os governos em regime “democrático” só concluem seus mandatos, se se curvarem às pressões das potências imperiais.
19. Vargas e João Goulart realizaram políticas que visavam a gerar maior autonomia econômica para o País, embora fizessem concessões ao poder imperial.
20. Diferentemente, Dutra cedera aos interesses das potências estrangeiras, e JK deu-lhes plena satisfação no essencial: a abertura aos investimentos estrangeiros, escancarada pela outorga de privilégios que permitiram as transnacionais, a médio prazo, assenhorear-se do mercado brasileiro.
21. Até a proteção tarifária e não-tarifária aos bens duráveis produzidos no Brasil significou uma vantagem a mais às multinacionais, ampliada, quando, em 1969-1970, Delfim Neto estabeleceu vultosos subsídios para a exportação de manufaturados, entre os quais créditos fiscais no valor do imposto de importação dos bens de capital e dos insumos.
22. Os governos militares de 1967 a 1978 tentaram redinamizar a economia sem alterar o modelo dependente, nem garantir espaço às empresas nacionais em face da então já dominante ocupação do mercado pelas transnacionais. O resultado disso nos leva a outro aniversário.
II — Agosto/setembro de 1982
23. Em 16.08.1982, o México declarou moratória.  Em seguida, o setembro negro, em que os gestores da política econômica brasileira, sob o espectro da inadimplência, imploraram aos  banqueiros internacionais refinanciar as dívidas.
24. A crise de 1982 foi muito maior a de 1961, gerada pelas políticas de 1954 a 1960. A causa essencial de ambas foi a mesma: a ocupação dos mercados pelas transnacionais, intensificada de 1964 a 1982.
25. JK recebeu a dívida externa de US$ 1,4 bilhão em 1955. Ao sair, deixou US$ 3,5 bilhões. Em 1964 ela fechou com US$ 3,1 bilhões, pulando para US$ 43,5 bilhões, em 1978, e para US$ 70,2 bilhões em 1982, tendo-se avolumado ainda mais pela elevação das taxas de juros e comissões, em 1979, além da composição desses encargos arbitrários.
26. As altas taxas de crescimento do PIB de 1967 a 1978 foram pagas pelo povo brasileiro, não só com a queda do PIB, de 1980 a 1984, e a estagnação nas duas décadas perdidas (anos 80 e 90). Em 1984, o Brasil transferiu para o exterior 6,24% do PIB e mais 5,54% em 1985.
27. Mas o dano maior - e irreversível sob as presentes instituições - é a  deterioração estrutural.   Essa prossegue até hoje e se caracteriza pela infra-estrutura deficiente e pela produção  quase totalmente desnacionalizada, inclusive através das privatizações de 1990 a 2002.
28. Há um processo cumulativo em que a desnacionalização faz crescer a dívida, e esta é usada como pretexto para desnacionalizar mais. Tudo isso faz prever novas e piores crises, em que cresce a desindustrialização.
29. As débâcles, como a de 1982, ilustram a mentalidade servil diante dos “conselhos” e pressões imperiais, pois o Estado brasileiro curvou-se às imposições dos credores, aceitando a integralidade de dívidas questionáveis, depois de tê-las alimentado, subsidiando a ocupação estrangeira da economia e inviabilizando a tecnologia nacional.
30. “O Globo” veicula a desculpa de Delfim Neto, de que  o colapso de 1982 decorreu da elevação dos preços do petróleo.  Isso não procede: a Argentina não importava petróleo, e o México era grande exportador. O denominador comum das maiores economias latino-americanas é o modelo dependente.
31.  Nos anos 70, a Petrobrás já substituía razoável quantidade de petróleo importado, e as importações eram pequena fração das de Alemanha, Japão, França.
32. O primeiro choque do petróleo deu-se em 1973. Daí a 1982 são nove anos. Tempo suficiente para medidas na estrutura produtiva, com resultados em seis anos, antes, portanto, do segundo choque do petróleo em 1979.
33. Tecnologia não faltava para substituir as importações de petróleo. O Brasil havia adotado, durante a Segunda Guerra Mundial,  uma solução que funcionou muito bem: o gasogênio, para mover  os veículos, com equipamentos que usavam carvão mineral do Sul, carvão e óleos vegetais. Foi abandonado após a Guerra, mas poderia ter sido retomado em 1973.
34.  Geisel apoiou Severo Gomes e Bautista Vidal, no Programa do Álcool. Mas este não prosseguiu na forma planejada, nem se avançou  nos Óleos Vegetais, que oferecem ao Brasil grande campo – até hoje inaproveitado – para produzir excelentes óleos e fabricar motores próprios para eles.
35. O dendê, na Amazônia e no Sul da Bahia, pode render mais de 6 mil litros hectare/ano. Para produzir quase tanto como a Arábia Saudita, ou seja, mais de cinco vezes o consumo brasileiro da época, bastaria plantar dendê em 60 milhões de hectares, ou seja, 12% da Amazônia Legal, associado a culturas alimentares. Em outras regiões a macaúba dá 4 mil litros ha/ano.
36. Essas opções são mil vezes melhores para a ecologia que extrair madeira para exportar, enquanto as ONGs vinculadas ao poder mundial fazem demagogia a respeito do desmatamento da Amazônia.
37. O óxido de carbono só é absorvido pelas plantas quando crescem. A Amazônia, com a floresta estável, não é pulmão do mundo. Esse papel cabe aos oceanos, que as petroleiras mundiais poluem de modo brutal.
38. É fácil e praticado, há muito, na Alemanha, produzir kits para adaptar motores ao uso de óleo vegetal. Melhor seria, mas o sistema de poder nunca o permitiu - produzir motores para esse óleo, o verdadeiro diesel. Biodiesel é um dos golpes do sistema para impedir o desenvolvimento dessas tecnologias, bem como as da química dos óleos vegetais e da alcoolquímica.
39. A deterioração das contas externas no final dos anos 70 serviu de gazua para a penetração do Banco Mundial no Programa do Álcool, desvirtuando-o, pois foi desvinculado da produção alimentar e tocado no  sistema de plantations e mega-usinas, hoje, na maior parte, desnacionalizadas.
40. Moral: se houvesse autonomia política, coragem e discernimento, ter-se-ia aproveitado o choque do petróleo para desenvolver produções agrárias e industriais com tecnologia própria e adequada aos recursos naturais. Resultaria em prosperidade social incalculável com a energia renovável, além de esse padrão de desenvolvimento autônomo estender-se a outros setores.
41. Em suma, o mega-entreguismo de Collor e FHC não teria sido possível sem as políticas inauguradas em 1954 e continuadas de 1956 a 1960 e de 1964 até hoje. Por que? Porque essas políticas engendraram a relação de forças econômica e política determinante das desastrosas eleições daqueles dois.
III — Sete de setembro de 1822
Está, pois, claro que o povo brasileiro precisa de real independência e que esta não existe. Não merece crédito o argumento de que há autonomia política, embora falte a econômica, porquanto uma não é possível sem a outra. Não se confunda a independência formal com a real.

Adriano Benayon é doutor em economia e autor do livro “Globalização versus Desenvolvimento”, editora Escrituras SP

Hiroíto, o rei (cinema)


Por Jorge Nagao

Rei? Não, estranharão alguns leitores, Hiroíto foi imperador. Então, esclareço que trata-se  de um Hiroíto brasileiro cujo pai era fã do país do sol nascente. Yamaguchi Falcão, boxeur medalha de bronze  nas Olimpíadas de Londres, é um belo exemplo dessa reverência prestada por seu pai a um amigo nissei. Quantas Sayonaras existem por aí como a filha do jogador palmeirense Obina.
Idolatrado no Japão e respeitado no exterior, o nome do imperador japonês foi recorrentemente registrado em cartórios do Brasil especialmente nos anos 30 e 40. O pai de Hiroíto de Moraes Joanides, um grego, não imaginava que o seu filho se tornaria um rei. 
Filho de uma família de classe média, Hiroíto, paranaense de Morretes, nasceu em 1936. Teve uma infância normal. Sua vida mudou quando foi à chamada boca do lixo para satisfazer os seus hormônios em ebulição. Gostou do local. E voltou muitas vezes. 
Em 1957, seu pai foi assassinado a navalhadas. Hiroíto foi acusado pelo crime  mas não foi preso. Decidiu mudar para o chamado quadrilátero do pecado. Não como um simples morador, mas sonhando em ser o imperador daquele submundo no centro da cidade, nos arredores da estação rodoviária paulistana no final dos anos 50.
Franzino, de óculos, culto, não tinha outra opção para se impor a não ser portando armas. Comprou dois revólveres porque as navalhas começaram a ficar restritas aos salões de barbeiros. Ao presenciar uma agressão à uma prostituta, esmurrou o agressor que revidou com pauladas; acuado, Hiroíto sacou a arma e matou pela primeira vez. Passou a ser admirado pelas pecadoras. Tempos depois, desacatado quando jogava bilhar, o “japonês”,  como era chamado, não hesitou: passou fogo no desafeto. Mesmo assustado com a sua atitude, sentiu-se o cara. Era o início da carreira do poderoso chefão.
Logo, de boca em boca, o seu nome foi crescendo na boca do lixo. Com muita astúcia e crueldade, traficando drogas e corrompendo policiais, Hiroíto foi dominando ruas e quarteirões. Quando era preso, um pacote de dinheiro resolvia o seu problema. Traficando, assasinando friamente os seus concorrentes, virou o rei da boca. Dormia pouco pois era perseguido tanto por policiais quanto por bandidos. Para se manter vigilante drogava-se constantemente. Reinou por três ou quatro anos, até que um dia, a casa dele caiu.
Preso durante sete anos, escreveu o livro “Boca do Lixo”, lançado nos anos 70 e relançado neste ano pela Labortexto. O livro retrata aquela São Paulo dos anos dourados e a trajetória do “japonês” que queria ser amado e tinha o prazer de ser temido, conforme anuncia o filme “Boca”, de Flavio Frederico. A crítica destaca as magníficas atuações de Daniel de Oliveira e Hermila Guedes. O filme que levou quatro prêmios no Festival de Recife, estreia nos cinemas em 28 de setembro. Lançado em DVD no exterior como “Boca the real goodfather” foi muito elogiado pela reconstitução da época pelo renomado jornal Variety. Para quem gosta de ação e não se importa com tantos tiros, consumo de drogas e safadezas em geral, como mostra o thriller, é um prato cheio.

Jorge Nagao é escritor e jornalista

Estação Che (literatura)


Por Afonso Guerra-Baião

Outra vez é tempo da bela Estação. As mesmas flores voltam com os eternos pássaros – e, no meio dos ruídos mutantes da cultura, se apurar o ouvido consigo ouvir Vivaldi. Nas entrelinhas da realidade sem mistérios é possível pressentir o mistério do mundo. Num exercício de meta-arqueologia, redescubro uma frase que poderia ser atribuída a um poeta ou a um místico: “Eles podem matar uma, duas ou três rosas, mas jamais conseguirão deter a primavera.” Essa frase é de um guerrilheiro: Ernesto Guevara de la Serna, o “Che”.
Todos sabem que Guevara foi executado pelos militares bolivianos em Higueras, no florescer da primavera: nove de outubro de 1967 – dois anos depois de ter renunciado ao cargo de Ministro da Indústria do Governo de Cuba. Na narrativa de sua existência, a revolução vitoriosa em Cuba constitui a prova principal; paradoxalmente, ele viveu sua prova glorificante nas selvas da Bolívia, onde encontrou sua hora e sua vez. Esses episódios constituem o eixo narrativo dos dois filmes de Steven Soderbergh, com magistral interpretação de Benício del Toro.
O que talvez nem todos saibam é que no intervalo entre essas, o Che viveu duas provas qualificantes: a malsucedida guerrilha no Congo e sua estadia em Praga por um ano, num período de preparação da campanha na Bolívia.
Nesse espaço de tempo dedicado ao recolhimento, à espera e ao planejamento, Che Guevara teria escrito os “Cadernos de Praga” que desapareceram com seu autor. São esses cadernos que outro argentino, Abel Posse, recriou no plano da ficção, baseado em depoimentos e pesquisas documentais – cadernos de notas pessoais, impressões subjetivas, em que o guerreiro mítico se mostra também um homem cheio de desejos e dúvidas.
“Cadernos de Praga”, publicado no Brasil pela Editora Record, traz como uma de suas epígrafes esse dizer de Kierkegaard:
“Os grandes serão lembrados. Mas cada um deles foi grande com relação às suas expectativas. Um foi grande esperando o possível. Outro, esperando o eterno. Porém quem esperou o impossível foi o maior de todos.”

Afonso Guerra-Baião é escritor

Melhor prevenir (saúde)


Por Adilson Luiz Gonçalves

O Brasil gastou quase R$ 21 bilhões, em 2011, para tratar de doenças relacionadas ao consumo de tabaco!
Consta que o fumo é causa de 82% dos casos de câncer de pulmão; 83%, dos de laringe; 13%, dos do colo do útero, e 17%, de leucemia mieloide.
A tributação sobre o tabaco não cobriria apenas 30% dessa “remediação” bilionária!
Mas, como vai a prevenção?
No Brasil, a publicidade é proibida e os malefícios do fumo são informados nas embalagens, com fotos dramáticas.
Incomodados que não querem mudar, alegam que isso é constrangedor e inútil. Em parte, têm razão, pois virou moda jovens comprarem cigarros “coloridos”, por unidade, ou fumarem “narguilé”, cem vezes pior que o cigarro. Provavelmente, isso não funcionaria nem em rótulos de bebidas alcoólicas.
Quem tem o vício e não reconhece, dificilmente ficará sensibilizado com esse tipo de conscientização. Acredita que isso não afeta os outros; que fuma porque gosto; que é “elegante”...
A ação mais efetiva foi o advento das leis antifumo, que tiveram ampla e positiva aceitação, mesmo entre fumantes. No entanto, seus detratores ainda tentam revogá-las, alegando inconstitucionalidade, discriminação, prejuízo financeiro, etc.
Mas, e quanto à prevenção?
Ele deve ocorrer na infância e adolescência, fase de autoafirmação em que os jovens correm o risco de buscar “independência” em falsas amizades e, mesmo, nos exemplos familiares.
Apesar de ter experimentado cigarro nessa época, não sou fumante. No entanto, meio pai fumava desde os 8 anos de idade, numa época em que homem cortava cabelo “americano curto”, usava navalha e fumava cigarro de palha ou sem filtro.
Como ele trabalhava em três turnos, eu adorava vê-lo fazer barba, entre uma e outra tragada no cigarro. Aquela mistura de mentol e fumo tinha cheiro de “pai em casa”!
Ele nunca nos incentivou a fumar, mas, essa imagem prazerosa potencializava isso. Meu irmão mais velho fumou, por pouco tempo. Outro, também mais velho, ainda fuma.
No que fui diferente, quando fumar era tido como um “rito de passagem?
Bem, aos 11 anos vi, na escola pública, um filme no qual um sujeito, após fazer um exame respiratório, ao acaso, foi informado que estava com o pulmão afetado.
— Porquê? — perguntou, surpreso, acendendo novo cigarro, para ouvir que a resposta estava em sua mão... Em seguida, veio a cirurgia para remoção de um pulmão totalmente enegrecido.
Logo que vi meu pai, pedi desesperadamente para ele parar de fumar! Não questionei sua autoridade: só quis livrá-lo do mesmo risco!
Pouco tempo depois, ele parou de fumar definitivamente.
Depois, lecionei Informática em cursos da área de saúde e vi trabalhos mostrando os resultados de acidentes provocados por bêbados e drogados. Terapia de choque, para não esquecer e evitar!
Será que as escolas fazem esse tipo de alerta aos adolescentes? Ou alguém considera que isso seja chocante demais.
Não é melhor mostrar exemplos dos resultados antes que amigos imbecis, traficantes ou pais “distraídos” ou convictos de seus “direitos” induzam nossos jovens aos vícios?
Essa ação educativa precoce contra: fumo, álcool e outras drogas — e, porque não, contra a corrupção! — seria muito mais eficaz do que imagens em rótulos, para quem já é dependente!

Adilson Luiz Gonçalves é membro da Academia Santista de Letras. Mestre em Educação, escritor, engenheiro, professor universitário e compositor. Ouça textos do autor em: www.carosouvintes.org.br (Rádio Ativa / Comportamento). Caso queira receber gratuitamente os livros digitais: Sobre Almas e Pilhas, Dest’Arte e Claras Visões, basta solicitar pelos e-mails: algbr@ig.com.br e prof_adilson_luiz@yahoo.com.br. Conheça as músicas do autor em: br.youtube.com/adilson59

A dor do inevitável (conto)


Por Cinthya Nunes

Meu desejo é que você tenha saúde e vida longa. Desejo, porém, que uma vez, uma única só vez na vida, você fique doente. Desejo que parte de sua saúde lhe deixe, temporária, mas incisivamente, somente o suficiente para que você possa de fato sentir a falta que ela lhe faz e o valor que ela tem.
Desejo que nessa provação, você se dê conta da fragilidade de sua existência e de quanto é tênue e delicado o fio que o mantém no mundo dos vivos. Desejo que você sinta medo ao perceber que não é de aço, de pedra ou imortal e que basta um simples sopro do destino para apagar a fraca chama que anima seus dias e suas horas.
Desejo que você, nessa hora, tenha a real compreensão da dor e do desespero alheios, especialmente daqueles que não vão melhorar dentro de alguns dias ou dentro dessa vida. Desejo que no auge da sua própria angústia pelas forças que lhe faltam, você entenda o andar descompassado e vacilante do velho em quem você acredita que nunca irá se tornar.

Cinthya Nunes é advogada, professora universitária, cronista e membro da Academia Linense de Letras (cinthyanvs@gmail.com)

Todo mundo isso, todo mundo aquilo (crônica)

Por Alexandre Brandão

Nunca saio de mim/Por isso sou só//Tenho uma camada de pó/Tomo remédios coloridos//Escuto com três ouvidos/E vejo com um olho só//Agora me olha e me diz/Se estou certo//Se sou mesmo este céu deserto (“Certeza sem nuvens e estrelas”, Rodrigo de Souza Leão)

Todo mundo arrasta uma simpatia por alguém que perdeu o prumo, saiu de órbita, bateu as asas para nunca mais pisar na terra — os lunáticos ou nefelibatas, os que mendigam o impalpável, os que se alimentam de luz. Todo mundo não se furta de bater papo com o doidivanas da praça, com a tresloucada que recolhe quinquilharias nas ruas do bairro. Todo mundo conta com sarcasmo as peripécias de um avô meio zureta. Todos estimamos, de fato, os que não saem de si.
Todo mundo comenta, com maldade e uma ponta de inveja, o nível de liberdade com que guia a própria vida a jovem atriz ou o marrento jogador de futebol. Liberdade uma ova, inveja-se o fato de um ou outro passar sem cerimônia por cima do que está longe de ser um reles cadáver. Todo mundo suspira pelo vilão charmoso da novela das nove. No fundo, todo mundo anseia uma aventura como a de disparar com o carro por avenidas impróprias à velocidade ou a de beber até dizer chega e enfrentar com ironia uma autoridade.
Todo mundo quer comer sem pagar. E quer cagar e andar pros problemas, pras dívidas, pro compromisso amoroso. Todo mundo deseja comprar uma passagem só de ida. Todo mundo preferiria agir antes de pensar. Em segredo, rimos do tombo alheio.
Não para aí, então continuo: todo mundo (eu, você e eles) gosta mesmo do politicamente incorreto, das piadas que caçoam das minorias, da cutucada dada nos que olham o mundo com inocência: os bem limpinhos e corteses. Todo mundo só pensa em sexo, nada disso de amor. Todo mundo acha que dinheiro roubado é dinheiro achado, logo, emite nota fria e lava dinheiro.
Todo mundo come de boca aberta. E prefere espancar a educar. Todo mundo gostaria que os outros morressem antes de chegar à velhice, que significa apenas despesa e caduquice. Todo mundo acha que os recados de seu intestino cheiram à flor. Todos, sem exceção.
No andar da carruagem, o império do eu-sozinho acabará triunfando. Os efeitos serão danosos, estou certo disso. E, preocupado — preocupado na mesma extensão com que me preocupo com o provável desastre ambiental que nos ronda —, lanço esse canto muitas vezes já cantado, inclusive por sábios. Canto que realça a importância do outro nas nossas vidas.

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Nisso de falar “todo mundo isso, todo mundo aquilo”, vem à minha memória nada tranchã certa história contada pelo cineasta Bigode (Luís Carlos Lacerda) sobre sua amiga Leila Diniz. Depois de uma apresentação — naqueles anos de chumbo da década de 1960 —, um militar adentra o camarim da atriz, leva-lhe flores. Ela, educada, agradece. O senhor então, em tom de ordem do dia, intima-a a jantar com ele. Leila recusa o convite — ou desobedece à ordenança. Ele, furioso: “Eu sei que você dá pra todo mundo.” Ela então: “Sim, dou pra todo mundo, mas não pra qualquer um.”
Leila Diniz, de fato, estava à frente do seu tempo. Quando vejo as manifestações recentes das mulheres lutando pelo direito de tomar posse política do próprio corpo, lembro-me dela. As “vadias” têm o espírito de Leila. Elas são a voz do outro, aquela que todo mundo deveria ouvir antes de falar ou de agir. Eu presto atenção nessa voz e me sinto feliz por estar vivo para isso.

Alexandre Brandão é escritor, autor de “Contos de homem” (Aldebarã, 1995), “Estão todos aqui” (Bom-texto Editora, 2005) e “A câmera e a pena” (Editora Cais Pharoux, 2009). Presente na coletânea “Amores vagos” (selo Estilingues). Lançou “No Osso: crônicas selecionadas” (Editora Cais Pharoux) , que pode ser adquirido na Singular. Visite seu blog