21 de fevereiro de 2017

O comportamento da burguesia “nacional” nas crises políticas


Por Marcelo Barbosa

Diante de mais um episódio de interrupção da experiência democrática brasileira – o mais grave desde 1964 – os setores da esquerda se voltam para a reflexão, promovendo um balanço de erros e acertos do ciclo iniciado com a posse de Lula, em 2003. Entre os itens sob exame, o estado das relações entre capital e trabalho. Para muitos, os governos do PT e seus aliados fizeram uma aposta equivocada: julgaram possível uma aliança de classes, estável no longo prazo, em torno da execução de um programa de crescimento econômico com distribuição de renda (ainda que limitada). Na opinião dos adeptos de profecias autorrealizadas, esse esforço, desde o seu início, se via condenado ao insucesso. Por muitas razões, mas com destaque para a inconstância das atitudes de um dos sócios do “empreendimento”, a chamada burguesia “nacional”.
Por certo, essa dissensão entre as esquerdas se espalha por outros tópicos: formato da frente política, projeções estratégicas, limites da luta institucional, aspectos programáticos e muito mais. No entanto, por considerar não só viável – mas também necessário – o relacionamento da área progressista com setores do centro, parece ser importante buscar alguma compreensão do comportamento do grande e médio capital na arena política. Isso pode ser bom para nos livrar tanto do preconceito quanto da ilusão.

A primeira dificuldade a uma investigação das motivações das elites empresariais concerne ao debate em torno da adequação e abrangência do termo burguesia para classificar tais estratos*. Como se sabe, na descrição dessa classe presente na obra de Marx e seus discípulos – orientada para a reconstituição do seu papel na reprodução material e ideológica do capitalismo – emerge um recorte muito preciso: trata-se do seguimento homogêneo em termos sociais, psicológicos e por vezes, religiosos, que detém a propriedade das riquezas e dos meios de produção e, portanto, concentra o poder econômico e político numa sociedade capitalista. Homogeneidade que, na hipótese, não implica ausência de diferenciações, pois o setor apresenta inúmeras distinções em relações à sua escala: grande, pequena e média burguesia. Ou, ainda, quanto às atividades de onde irradia influência: comércio, indústria, bancos, agronegócio, produção de serviços, entre outros ramos.

Não cabe, neste espaço, questionar a validade dessa caracterização obtida junto aos clássicos. Terminologicamente adequado, ou não, o conceito de burguesia ocupa lugar de destaque no panorama do pensamento social brasileiro, em especial no que se refere às discussões acerca do caráter “nacional” ou “entreguista” das elites empresariais. E, com registros absolutamente distintos, refletindo a pluralidade do debate sobre o tema. Na tradição cepalina – isebiana (convalidada pelas teses do PCB, no pré-64), os processos de industrialização em curso a partir de 1930, teriam por consequencia o acirramento das contradições entre os interesses econômicos locais e os externos, gerando em setores das classes dominantes a consciência da necessidade de uma aliança com o proletariado, com vistas ao estabelecimento de um desenvolvimento capitalista independente no país, esse último concebido como via de erradicação do atraso estrutural brasileiro em termos políticos, sociais e econômicos, em especial no que diz respeito à sua estrutura agrária.

Refutando a visão cepalina, os próceres da chamada teoria da dependência negaram à burguesia “brasileira” um caráter autônomo. Na crença dos setores ligados a essa interpretação do desenvolvimento histórico do país, mesmo no período anterior ao golpe militar-civil de 1964, e da conseqüente passagem do capitalismo brasileiro a uma etapa monopolista, a atitude que singularizaria o empresariado da nossa periferia – nada obstante a presença de conflitos sobre questões secundárias – seria o alinhamento aos países centrais e suas empresas. Ou seja, ao segmento nacional dos capitalistas, qualquer processo de democratização profunda da sociedade que acenasse para a modificação do perfil de distribuição de renda e a conseqüente afirmação (tímida que fosse) do caráter social do regime de propriedade seria inaceitável. Assim, entre se aliar ao povo ou à alta finança internacional, a burguesia brasileira sempre historicamente preferiu a segunda opção.

Aparentemente, o julgamento implacável da história parece ter dado razão aos teóricos da dependência. De fato, todo o debate, inclusive acadêmico, aqui e lá fora, evoluiu no sentido de negar um caráter autônomo às aspirações do empresariado dos países periféricos. Neste sentido, o termo “burguesia interna”, formulado por Poulantzas ainda no período de gestação do neoliberialismo – em meio à década de 1970 – talvez substitua, com vantagem, a categoria “burguesia nacional”, pois tem o mérito de sinalizar a necessidade de identificar as mudanças no comportamento dessa fração de classe nos quadros da chamada “globalização”, particularmente a diminuição do ímpeto antiimperialista desse ator social.

Mesmo assim, caberia liminarmente, enunciar a seguinte ordem de reserva ao argumento dos teóricos da dependência: mais do que o alinhamento ao imperialismo, o que distingue o comportamento da representação política do capital, tratada nos clássicos por “burguesia nacional”, é o caráter pendular de sua atuação. Assim, no século XX, esse segmento esteve junto ao povo em 1930, 1961, 1985 e 1988 (na promulgação da Constituição). Em contrário procedimento, vinculou-se à reação interna e externa, nos episódios do Estado novo de 1937, na tentativa golpista de 1954, no movimento civil-militar de 1964 e por fim, no consulado de FHC, iniciado em 1994. Seria interessante indagar em que medida as oscilações periódicas da burguesia “nacional” em direção à posições antidemocráticas, para além da influência de fatores objetivos como o aprofundamento das crises cíclicas do capitalismo, não acusam a falta de vocação hegemônica da nossa esquerda no domínio de itens decisivos à conquista e manutenção do poder político: capacidade de mobilização, clareza programática e unidade orgânica de seus agrupamentos, em especial, nas conjunturas históricas como a desse agitado 2016.

Podemos concluir, portanto, a observação da realidade não deu razão e – nem desmentiu inteiramente – nenhuma das duas grandes vertentes explicativas do comportamento das elites empresariais brasileiras. Porém, tornou visíveis, aos agrupamentos da esquerda do espectro político, os riscos subjacentes à aplicação unilateral dos postulados de qualquer uma das duas teses: de um lado, a ameaça da” ilusão de classe” na projeção cepalina e do outro, do isolamento político, na interpretação da dependência.

(*) Será que não deveríamos estar mais atentos à irrupção de uma nova – em termos históricos – camada social que, em condomínio com a burguesia tradicional, governaria o mundo pelo manejo da informação, ciência e da técnica, estando encarregada da administração e reprodução simbólica do capitalismo? Isto é, a parcela dos bilionários do clube do 1%, detentor de mais de 50% da renda mundial: financistas, especialistas em marketing, cientistas, astros da música, cinema e esporte, tecnoburocratas em geral. Nos Gundrisse, Marx alertou para a possibilidade de uma parcela da sociedade com essas características vir a tornar-se dominante.


Publicado no blog Plataforma Política Social.


Marcelo Barbosa da Silva é pós-doutorando em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX

 



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