A
eleição de Donald Trump, entre outros significados, expõe a derrota de uma
esquerda (no caso, a do Partido Democrata) mais empenhada na mobilização de
temas da cultura e comportamento do que em lançar mão da luta de classes. Um
revés que serve de alerta. Isso não apenas em relação aos partidos e movimentos
progressistas dos Estados Unidos, mas de todo mundo. Com o trauma, surgem
pontos de interrogação: qual o futuro da coalizão formada por jovens, mulheres
e “minorias” étnicas – entre outros nexos – empenhadas em promover a crítica
dos instrumentos e práticas tradicionais de ação da classe trabalhadora? Qual o
saldo de reflexão acerca da prática dos sujeitos históricos surgidos no
pós-1968? Por ora, trata-se de perguntas sem respostas. Pelo menos não
definitivas. O que se pode fazer, ao calor da hora, consiste na tentativa de
reconstituir – em síntese breve – o trajeto dessas propostas em cotejo com as
matrizes da teoria onde se reconheceram. Para tanto, há necessidade de voltar
no tempo, mais precisamente às origens do protesto anticapitalista.
No
projeto crítico dos fundadores do materialismo histórico – Marx e Engels – o sujeito histórico da transformação da
realidade pode ser identificado numa classe: a dos trabalhadores assalariados
(urbanos e rurais) e seu aliado de todas as horas, o campesinato. Trata-se de
um ator político radicalmente comprometido, por força da exploração de sua
força de trabalho, com a socialização dos meios de produzir bens e serviços,
aparato em mãos de uma minoria de burgueses possuidores da renda e riqueza em
qualquer sociedade capitalista. Desde 1848, quando se tornou visível a olho nu,
nas páginas do Manifesto do Partido
Comunista, até o presente, esse agente da rebelião contra o poder do
capital assumiu várias identidades: operário fabril no Outubro Russo (1917);
camponês na China e Vietnam (1949/1975); e até mesmo pequena-burguesia anti-imperialista
em Cuba (1959). Modalidade de luta de classes – só que em escala mundial – o
antagonismo entre países centrais e periféricos também favoreceu a gênese de
uma consciência nacional responsável pelo surgimento de ideologias de conteúdo
anti-hegemônico, por todo o terceiro mundo, a exemplo do sandinismo, na
Nicarágua ou o nasserismo, no Oriente Médio.
Com
poucas variações, a iniciativa desse sujeito irradiado a partir da liderança
dos trabalhadores assalariados monopolizou as ações visando construir
sociedades socialistas ao redor do globo. Seu mandato, digamos assim, jamais
recebeu contestação. Muitas vezes, os trabalhadores obtiveram o auxílio de
outros segmentos, como as mulheres e seu memorável movimento sufragista. Porém,
essa colaboração sempre ocorria em chave subordinada e nunca em igualdade de
condições. Muito possivelmente, por obra de processos de urbanização e expansão
das camadas médias, nos últimos cinquenta anos (mudanças verificáveis,
inclusive, nos países mais pobres), a luta de classes – em sentido clássico – passou
a sofrer a concorrência de outras formas de “assujeitamentos” para usar um
jargão da moda. Em suma, a representação política da esquerda de inspiração
marxista se viu às voltas com a concorrência de outros segmentos empenhados em
expandir os limites da democracia e da igualdade mundo afora. Como lidar com
isso?
Preliminarmente,
é preciso reconhecer a legitimidade de mecanismos de formação de identidades –
adquiridos em experiências que não se opõe, mas também não se esgotam na luta
de classe – e que explicitam a presença de um sem-número de contradições
insuscetíveis de recorte apenas no âmbito do poder político stricto sensu, entre os quais: o
protesto das mulheres contra a opressão machista, dos grupos LGBTs em face da
discriminação, dos povos originários pelo reconhecimento de sua herança
cultural, ou ainda, das populações afrodescendentes no enfrentamento do racismo.
Enfim, de uma infinidade de contornos cada vez mais presentes na teoria e
prática dos coletivos da cultura e movimentos sociais. (Reconhecer a
legitimidade das lutas desses setores, incorretamente tratados por “minorias”,
não significa endossar a atitude de todas as suas frações, algumas delas
comprometidas com a defesa de ideologias, no mínimo, discutíveis, a exemplo do diferencialismo
cultural).
Sem
data de certidão de nascimento propriamente dita, essas políticas de identidade
adquiriram maior visibilidade, porém, a partir das revoltas estudantis de 1968.
Com a impulsividade típica da juventude, os participantes daqueles protestos “reinventaram
a roda”. Ou pelo menos, assim o pretenderam. Com base numa constelação teórica capaz
de reunir de Marcuse a Focault, fizeram largo uso da descoberta de Lacan referente
à presença de um sujeito cindido, imerso num complexo relacional situado para
além da materialidade das relações econômicas. Um “corpo” integrado por malhas
de desejo, redes de afeto e, em muitos sentidos, por aspirações à identidade.
Em resumo, os jovens do período converteram a revolução num objeto estético. Se
debatendo entre a produção da subjetividade e a demanda por institucionalização,
a crítica promovida pela esquerda pós-1968 influenciou profundamente os
acontecimentos das últimas décadas, principalmente no que diz respeito às
relações entre a espécie humana e a natureza. O que não é pouco, convenhamos. Por
conta das interrogações dirigidas por umas de suas grifes – o movimento
ambientalista – caiu inteiramente em descrédito a concepção de progresso
material fundada na exaustão de recursos não renováveis, direta ameaça ao
futuro da vida no planeta.
Em
registro menos luminoso, porém, várias das ramificações da esquerda identitária
abandonaram o compromisso com uma plataforma anticapitalista. Especialmente após
a derrota simbolizada pelo fim do bloco socialista, ao final da década de 1980.
Nesse momento, de evidente derrota ideológica, não foram poucos os segmentos da
política da identidade que migraram da esquerda para o centro, prestando
vassalagem à economia de mercado e impulsionando – mundo afora – a expansão de
organizações não governamentais (ONGs), ostensivamente financiadas por grandes
corporações. A essa altura, o maio de 1968, com seu lema, a “imaginação no
poder”, equivalia apenas a uma lembrança de sua melhor performance: o momento
em que, unindo-se ao movimento sindical, a coalizão libertária mandou, virtualmente,
pelos ares a IV República Francesa. Episódio concluído em derrota, mas grávido
de significação e consequência, pela atualidade do exemplo oferecido.
Passando
em retrospecto todo esse passado de lutas – composto de um mosaico de
tendências em conflito – uma simples evidência se impõe à análise: pelo visto, a
utopia das chamadas “minorias” glutina mais força cultural do que política e
que, para provocar impacto sobre a esfera pública, precisa se unir em aliança (tensa
e atritada, por sinal) com a representação das forças do trabalho. Sem isso,
está aberto o espaço para a fragmentação de sua influência e a cooptação de suas
propostas pelos partidos da ordem, inclusive os de corte neoliberal.
Hoje,
possivelmente sob impulso da crise mundial deflagrada a partir de 2008, a
juventude – como sempre – empenha sua influência nos movimentos de massa para
trazer a esquerda identitária para mais perto da classe trabalhadora. Uma
espécie de volta às origens. Em termos de literatura, a inspiração para essa
retomada pode ser buscada em autores tão distintos quanto Toni Negri ou ainda
Zlavoj Zizek, em sentido eclético. Porém, o marxismo participa da renovação da
cultura insurgente por meio de nomes como James Petras, Angela Davis e David
Harvey – entre outros. Essa conjugação entre prática e teoria explica, pelo
menos em parte – uma vez que há outras condicionantes – o surgimento de
agrupamentos com as características do Podemos, na Espanha ou o Bloco da
Esquerda, em Portugal. Em menor proporção, também descreve a dinâmica de organizações
como A Esquerda, na Alemanha e o Syriza, na Grécia.
Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX
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