26 de abril de 2012

Denúncia de intolerância contra opção sexual sábado, na Lapa

Grande Zé Max!
Um absurdo temos ainda vivermos com esse grau de intolerância em nossa sociedade.
Tenho ódio e nojo do preconceito e da discriminação.
Kadu Machado

para trás ficou
a marca da cruz
na fumaça negra
vinda na brisa da manhã
ah, como é difícil tornar-se herói
só quem tentou sabe como dói
vencer satã só com orações

(agnus sei, aldir blanc/joão bosco por elis)

amigos, relato. nem todo mundo soube do que aconteceu no último sábado na lapa. é um pouco longo, mas peço a atenção de vocês, principalmente daqueles que frequentam o bairro.

fui espancado, com mais três amigos, por um grupo de caras motivados por ódio num crime de homofobia. antes de tudo devo dizer que estamos todos bem fisicamente e que embora muita gente já saiba, todos os nomes foram preservados nesse relato.

eram quase cinco da manhã. nós havíamos acabado de sair do sinuca tico e taco, na rua da lapa, acompanhando uma amiga que queria comer alguma coisa no ximenes (esquina da joaquim silva com teotônio, em frente à escadaria do selaron). depois que ela comeu e foi embora a gente continuou ali, sentado no meio-fio, de boa, conversando.

foi nessa hora que dois malucos se aproximaram.

éramos em cinco, quatro homens e a Nicole que tava com a gente desde o início. eles não nos conheciam, nós não os conhecemos, é importante dizer. foi apenas por entenderem que éramos gays, pela forma que estávamos sentados, de mãos dadas, ou encostados uns sobre os outros, que nos agrediram.

primeiro, dizendo coisas, como: "ih, vocês são viadinhos, sentados aí todos juntos? não curtem mulher não, né? deviam tá pegando mulher. eu já peguei quatro buceta hoje! e vocês ficam aí no meio da rua, com todo mundo vendo!" e indo além: "quem vai chupar meu pau?", perguntou um deles, jogando uma moeda de dez centavos em nossa direção.

a gente reagiu atirando a moeda de volta e deixando bem claro que não tava afim de papo com eles, e que fossem embora, porque, afinal, já haviam cumprido seu dever/obrigação social de sair na sexta pra pegar mulher.

estimulados pelo ódio de ver amigos trocando afetos em público, inadmissível moral e ideologicamente, partiram da provocação verbal pra agressão física em um empurrão e um chute. ficamos de pé e teve um princípio de confusão que, de nossa parte, não foi além de dizer que não iríamos tolerar agressão e pedir que fossem embora. saíram resmungando alguma coisa e desceram em direção aos arcos, e nós, nos abraçamos em grupo, tentando entender o que havia acabado de acontecer.

minhas pernas tremiam. lembro que pelo meu corpo subia o sangue quente que fazia minhas mãos queimar como fogo. gritei como um louco! ninguém esperava por isso, não naquele lugar. só que não era o fim... coisa de minutos depois, eles voltaram em bando. eram 10, 12, 15 caras com eles, ninguém sabe direito, foi muito rápido.

nós estávamos ainda de costas para a rua quando um daqueles caras que chegou primeiro foi logo dando um soco na cabeça de um amigo. no meio da rua, vinham mais três ou quatro, e um grupo maior vindo mais atrás pela calçada da joaquim silva. gritei CORRE!

descendo pelo beco da teotônio, um amigo conseguiu escapar, enquanto corria de costas se defendendo, à procura de qualquer ajuda; de amigos, que a essa hora deveriam estar no bar da cachaça; ou da polícia e da guarda municipal, mas sem sucesso. tanto porque não havia ninguém conhecido, quanto porque, no posto da GM, perto do circo voador, riram dele dizendo que mandariam um carro pra lá, que nunca chegou.

outro amigo nosso caiu no chão do primeiro ataque, sendo chutado por quatro ou cinco caras. pulei no meio dessa roda, girando enquanto também batia e tentava defesa, mas fui puxado e rasgaram minha camisa. tomei vários chutes, socos nas costas, na face e na cabeça. esse amigo foi arrastado do bueiro até o outro lado do beco sem deixarem de espancá-lo por um minuto, eles chutavam na cabeça!

mais acima, perto do bar, uma mulher achou que ajudava colocando um pedaço de pau na mão do primeiro amigo. quando viram, ficaram mais loucos ainda, partiram pra cima dele sem dó, que atingiu um deles sem muita força. depois corremos juntos em direção aos arcos, mas antes mesmo de chegar na altura do prédio em obra, atiraram o pau e pedradas. resistimos e continuamos a correr na joaquim silva, quando um cara na esquina, aparentemente aleatório, tomou a nossa frente e chutou nossas pernas pra gente cair.

tudo era difícil: correr, fugir, sobreviver, proteger, reagir, pedir ajuda. tudo era uma luta.

só senti falta na hora de gente pra ajudar a conter aquele massacre.

eu desci pela rua do depósito que dá na pizzaria guanabara com gente ainda me seguindo, então cruzei a rua em direção aos arcos da lapa e encontrei aquele amigo que escapou já voltando da guarda municipal. quando ele me contou do descaso, avistei um carro da GM na riachuelo e, no meio do trânsito, corri pra cima pedindo urgência. voltamos pra joaquim silva, subindo pelos arcos, achando que a guarda vinha logo atrás. que nada! bem no meio da rua estavam eles em estado de alerta.

um amigo conseguiu fugir sozinho; outro, soube depois, teve ajuda de uma senhora que é do local e foi com ele até perto da sala cecília meireles, oferecendo socorro e dinheiro pro táxi. logo depois avistamos os dois já juntos perto de onde tem aquela placa de reurbanização da lapa. demos um jeito de sair rápido desse local e fomos tentar ajuda na guarita da PM ali do lado, mas não tinha ninguém. éramos nós por nós mesmos, como é na real.

nos abraçamos e cuidamos uns dos outros. dois amigos ficaram tão mal do espancamento que não puderam vir com a gente pra delegacia, onde, aliás, foi outra luta.

três horas de espera pra fazer um registro envolvidos em todo um tratamento, diálogo e representação que dão conta da falência do estado e suas instituições públicas medievais, de segurança, e não só, engessadas e incapazes de compreensão, acolhimento e defesa. apesar disso, insistimos.

insistimos por saber que são esses registros institucionais, esses indíces, que são levados em conta na hora de se fazer as leis. por saber que o silêncio, ainda que caro, é conivência, é derrota e espaço pra reprodução do terror e do medo. e não é por outra razão que manifesto esse relato. e no entanto, somos menores do que o fato ocorrido.

por isso eu quero que meus amigos saibam, quero que minha família saiba, quero que meus parentes e colegas de trabalho saibam, quero que todo mundo que me conheça, saiba: eu, José Maxsuel, fui vítima de homofobia. que os fatos sejam sabidos: pelo governo, pelo direito, pelas artes, pela mídia. quero que saibam, do comerciante ao frequentador.

quero, porque é algo que perpassa todas essas sociabilidades, e que precisa ser atravessado de todas as maneiras. é preciso que se pense, que se discuta, que se afete, que se questione, que se sinta, é preciso saber que uma ideia é uma arma, e que mata!

é preciso também que a gente se afirme sem se fechar — que não sectarize, emancipe — todos: negros, mulheres, gays! todas as lutas, identidades e devires do eu-além-do-sujeito, porque é uma luta pra SER, todo dia! e só SER é sempre muita coisa.

portanto, que saiamos desse lugar fácil de vitimização, paranoia e medo, e afirmemos a potência dos últimos encontros e das coisas que tão rolando, é a nossa resistência! é o movimento que gera essa crise que pode gerar mais movimento.

levei esses três dias me recuperando, indo da ira e do desejo de destruição, de matéria e símbolos, ao estado de tranquilidade e paz interior, alimentando meu corpo, ouvindo as pessoas, me fortalecendo, mas o todo tempo pensando no que a gente pode fazer com isso. fazer do ato de ódio uma infantaria amorosa na joaquim silva!

acho que é hora de acionar as redes e levar um pouco de amor pra todo lugar hostil. é isso, ou vamos continuar dizendo à mulher estuprada que a culpa na real foi dela? é isso, ou o medo daqui em diante de mostrar nossa afetividade na rua?

não me interessa a segurança da minha casa, o vidro fechado, o carro blindado, condomínio isolado, a paz do gueto. eu quero reclamar esse espaço que é a rua, porque, se não velho, nada disso faz sentido. eu não acredito, ou não quero acreditar, que é assim mesmo, que tome cuidado e que fica por isso. no último sábado na lapa, não apanhei sozinho.

apanhamos todos!

há sinais de uma mudança política, fruto de uma política maior que nos afeta. tudo sintomático numa conjuntura que nada deve desconsiderar, desde as coisas mais ou menos explícitas, como o que houve na sexta-feira da paixão com o bloco rec!clato — pode ser lido aqui: https://www.facebook.com/note.php?note_id=421741827839561 — até as mais sutis.

agora, em proposição e resposta, queremos ouvir as redes. queremos um encontro nosso, de repente já no próximo sábado, dia 28, com intervenção de arte e política (desculpar a redundância), choque de amor e espaço aberto pra performance, pra conversa, sei lá, pensar mil maneiras de ocupar o espaço, intervindo e dialogando com a rua.

e que houvesse a presença de amigos, frequentadores, todas as redes e coletivos e afins, porque há uma violência à solta que não é especialmente sobre mim, ou sobre meus amigos, e nisso não há dúvida de que a gente precisa se fortalecer, transversalmente.

contra todas as formas de violência.

ps: esta pessoa deseja poder frequentar qualquer lugar sem medo.

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