20 de novembro de 2015

Uma crise estrutural e politica


Por Marcelo Barbosa
Karl Marx passou a vida adulta inteira combatendo certas leituras feitas em seu nome, nas quais o fator “econômico” excluiria todas as demais mediações da realidade social. Seu principal colaborador, Frederic Engels, visando recuperar a verdadeira dimensão dialética do método criado pelo autor de O Capital, colocou o debate em suas devidas proporções: “Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância, na história, é a reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu afirmamos mais. Se agora alguém torce isso (afirmando) que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda”.

Não obstante esses esclarecimentos, boa parte das correntes e militantes políticos (de alguma maneira referenciadas no marxismo) continuaram a enxergar a política como um “reflexo” automático da economia. Isso aconteceu no passado, mas também na atualidade. Prova disso consiste na maioria das interpretações acerca das raízes da atual crise política em andamento no país. Quase todas as hipóteses atualizam essa lógica não digo de preponderância, mas de exclusividade, do fator econômico.

Essa “carapuça” teórica serve para todo mundo, inclusive para mim. Sinto enormes dificuldades para enxergar os contornos políticos da presente conjuntura. Ainda mais quando se sabe que a origem dos atuais desequilíbrios exibe forte conexão com a (des)ordem financeira mundial instalada desde 2008, com seus desdobramentos locais, no Brasil.

Mesmo assim, em meio a toda ofensiva dos setores neoliberais – que conseguiram submeter o governo do PT e seus aliados a um cerco – ainda existe um aspecto pouco explorado na análise dos setores progressistas: o papel da Constituição da República na atual crise política. Ou seja: em que medida a instabilidade institucional experimentada pelo país não é fruto das tentativas do “núcleo duro’ da direita, isto é, a coalizão PSDB-DEM, de destruir o pacto político inaugurado em 1988? Caso essa pergunta detenha alguma pertinência, a duração do quadro presente se deslocaria no tempo, adotando uma feição de médio e longo prazo.

Já se discorreu – e muito – sobre o conteúdo democrático e avançado da constituição de 1988 (com todas as insuficiências de uma carta ainda inscrita no âmbito do sistema capitalista). Não convém repetirmos as avaliações. Trata-se apenas de fixar a sua dimensão mais destacada: a de regramento democrático para a luta política de classes em curso na sociedade.
A verdade é que, sob a égide da constituição atual, importantes vitórias políticas foram obtidas, como a eleição e a continuidade de governos progressistas nos últimos 13 anos e, no plano social, o tímido, mas importante, combate à desigualdade.
O prosseguimento dessa dinâmica não interessa ao setor mais organizado da direita brasileira. Com isso, de forma surda, germinou um mal-estar de longa duração tornado insuportável ao momento: essa crise é marcada pela existência de uma superestrutura (com toda conotação problemática do termo) jurídica voltada para a ampliação da democracia política e da justiça social em contradição com a base material de uma sociedade das mais desiguais do mundo.

Pelo visto, o país atravessa o momento mais agônico desse impasse. Que vai se resolver pela afirmação da atualidade dos princípios coordenadores da Constituição de 1988 ou por sua transformação em letra morta, como querem os seus detratores.

Alguma dúvida?
Em 2015, todo o esforço de elaboração legislativa da parcela mais orgânica da direita brasileira visou o ataque a direitos coletivos, apenas passíveis de revogação por meio de alteração expressa da Constituição ou violação de suas diretrizes. As centenas de PECs, projetos de lei, regulamentações convergiram para quatro eixos: diminuição da maioridade penal, apoio à terceirização das atividades laborais, financiamento empresarial de campanhas políticas e modificação no regime de exploração do petróleo.
Isso sem mencionar a expectativa da reação em favor de um impeachment da presidente Dilma sem a menor correspondência ante às exigências previstas na Lei Maior.

Em todos os casos citados, a postura da administração Dilma foi a da defesa da legalidade, ora manifestando-se contrária às agressões ao texto constitucional, ora exercendo veto sobre as matérias aprovadas pela maioria de ocasião no Congresso. Assim, apesar do apoio ao chamado “ajuste fiscal”, o Poder Executivo tem se manifestado como guardião da ordem social avançada prevista na Constituição da República (com menos vacilações que o Judiciário e sem o golpismo do legislativo).

Com base, portanto, na observação dos resultados da luta, que mobilizou ruas e instituições ao longo desse ano, uma pergunta amadurece nas consciências: não está na hora da agenda de longo prazo, orientada para a preservação e ampliação dos direitos, prevalecer sobre as exigências de uma “austeridade” econômica sem viabilidade, em tudo e por tudo, incompatível com preceitos derivados do pacto político promulgado em 1988?

Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ e diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX

 Promulgação da Constituição de 1988

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