19 de junho de 2015

Rede Globo: uma trajetória de decadência?

Por Marcelo Barbosa

Após completar seu cinqüentenário na liderança em quase todos os horários, a Rede Globo de televisão começa a avistar à frente, nos últimos meses, sinais inquietantes de um futuro pouco promissor. E isso nem tanto pela queda de audiência de seus principais programas. Afinal, em sua história, a emissora já enfrentou cenários de adversidade antes e os superou. A atual crise, entretanto, contém elementos novos. O mais evidente de todos, a diminuição da quantidade de aparelhos sintonizados na TV de sinal aberto. Ou seja, cada vez mais gente – e isso constitui tendência irreversível – assiste TV via internet e/ou por meio de canais pagos. Por ser líder, a Globo se ressente mais do que todas as outras dessa diminuição de seu raio de influência. Como se não bastasse, já se mostra visível o divórcio entre a Globo e as expectativas de seu público até então cativo, conforme o caso da massa de espectadores de toda a região metropolitana de São Paulo – fatia mais cobiçada do mercado publicitário do país. Nessas áreas, os carros-chefe da programação da TV da família Marinho, o Jornal Nacional e a atual novela das nove, simplesmente despencam nas medições do ibope.

Uma crise terminal? Impossível saber ao certo. A constatar apenas um fato: a Globo não conseguiu estabelecer com o governo do PT e seus aliados a mesma relação construída com o poder militar-civil instalado em 1964 e nem a simbiose de interesses firmada sob o consulado neoliberal da década de 1990. Não se sabe se por causa de tal circunstância (ou a despeito dela), desde a posse de Lula, em 2003, o gigantesco grupo vem perdendo substância. Fenômeno que ocorre de maneira natural, sem que tenha sido alvo de alguma iniciativa de Estado nos moldes da Ley de Medios, promulgada na vizinha Argentina. Seja como for, envolvida numa guerra fria com as administrações de Lula e Dilma, a Globo definha.

Associada a um ideário político, social e econômico distinto daquele proposto pelo PT, a chamada “Venus Platinada” não pôde cumprir, nos últimos 12 anos, o papel de braço cultural, de representação da “identidade brasileira”, presente no imaginário dos condomínios a se revezarem à frente do Estado desde 1965, data de sua estréia. Não consegue mais exercer uma função semelhante à desempenhada pela Rádio Nacional durante a Era Vargas. Parte dessa incapacidade de realizar, na atualidade, as tarefas a que se propôs, com êxito, no passado, guarda alguma ligação com a (relativa) perda de interesse por produtos como as suas novelas e minisséries. Ao que tudo indica, declina progressivamente a parcela de espectadores capazes de se sentirem retratados nas tramas do folhetim eletrônico criado na fábrica de fantasias localizada nos estúdios do Projac. Fórmula considerada infalível, por muito tempo, a teledramaturgia global, que convocou os talentos de escritores como Janete Clair Gilberto Braga e Dias Gomes – entre muitos outros – agora enfrenta impasses, revelando exaustão de temas e estética.

Para a nossa falta de sorte, as alternativas ao elitismo e ao conservadorismo inerentes ao “Padrão Globo de Qualidade” pouco animam. Só observadores muito ingênuos crêem na afirmação de uma identidade cultural pluralista a partir das programações exibidas pelo SBT e pela Rede Record. No caso do primeiro – notório pela repetição de enlatados mexicanos e exploração da economia popular em programas de auditório – o mercado encontra a sua metáfora mais direta. Sem qualquer mediação. Ali, reina a franqueza do empresário Sílvio Santos, com seu lema: “vamos faturar”. Muito mais repleta de matiz é a atitude do grupo liderado pelo Bispo Macedo. Na Rede Record, assim como na Globo, por trás da expectativa da sobrevivência e do sucesso econômico, transparece uma vontade de moldar o senso comum da população. De intervir sobre a política. De preferência, pela via do reforço de valores presentes numa matriz religiosa de cunho protestante. Em tal visada, a anexação cultural ao imaginário dos países centrais, particularmente os EUA, acontece de maneira deliberada. A fórmula envelhecida do drama familiar exposto nas novelas da emissora carioca começa a dar lugar à mitologia hollywoodiana dos épicos bíblicos e ficção científica presentes nas tramas da Record.

No jornalismo, as diferenças entre as duas redes alcançam um relevo perceptível. Fiel ao conservadorismo genético das elites brasileiras – com ênfase numa conduta próxima das ideias de um Gilberto Freyre – a Globo se pretende pêndulo entre modernidade e tradição: liberal em economia, arejada em matéria de costumes, tolerante em relação à matéria religiosa. Uma postura de equilíbrio, sem dúvida. Mas, que não resiste inteira quando o assunto diz respeito ao governo do PT e seus aliados. Nessas horas, a máscara cai e o velho patrimonialismo assume, de vez, as rédeas do processo, propiciando uma cobertura noticiosa completamente distorcida a respeito de temas da maior importância, entre os quais, os incidentes de corrupção administrativa presentes na rotina do Estado Brasileiro, desde sempre.

Tão intolerante quanto a Globo na medida em que adversária de um projeto de afirmação do caráter laico da sociedade, a Record disfarça bem a sua característica próxima ao fundamentalismo religioso. Ou melhor, faz um ótimo uso desse expediente. Cria ilhas de objetividade jornalística (vide o programa do repórter Paulo Henrique Amorim) e, simultaneamente, põe no ar varias horas diárias de programas sobre a rotina policial nos quais não hesita em defender teses de direita como a redução da maioridade penal ou a adoção de um “estatuto da família”. Não comete, entretanto, o maior dos desvarios da concorrente: mantém uma postura de apoio crítico às administrações federais em curso desde 2003. Nessa opção, provavelmente, resida o segredo do crescente sucesso do jornalismo da emissora do Bispo: o milagre de agradar moderadamente os segmentos pró-governo das ditas novas classes médias (sic), sem se descolar da parcela oposicionista do mesmo conjunto social. Em outras palavras, na disputa pelo público “neocoxinha” – para utilizar o vulgo popular – tem tudo para levar a melhor.

É de se desejar que o colapso final do império Globo, caso aconteça, não venha a ceifar os milhares de empregos oferecidos pela rede (atores, técnicos, músicos, fotógrafos, roteiristas, cenógrafos, entre outros). Isso sem falar da capacidade de ancoragem proporcionada pela Globo à  indústria do audiovisual brasileiro, em especial no que se refere ao cinema produzido no Rio de Janeiro.

Para terminar, uma proposta provocativa: em sendo a emissora uma concessão pública, com uma dívida estratosférica junto ao BNDES, porque o Governo não retoma o controle do grupo? Por que não estatizar a Globo em benefício da coletividade?





Marcelo Barbosa é advogado, doutor em Literatura Comparada pela UERJ, diretor-coordenador do Instituto Casa Grande e autor, entre outros, de A Nação se concebe por ciência e arte – três momentos do ensaio de interpretação do Brasil no século XIX

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